Peço antecipadamente perdão pelas várias referências que faço a artigos que escrevi anteriormente, mas parece-me que poderão ser úteis na explanação da minha opinião sobre o artigo em referência.
Um dos pontos em que concordo a 100% com o escritor é o facto de que o nosso referencial deve ser sempre, em exclusivo, a Palavra de Deus, a Bíblia. Ela é a autoridade, é inerrante, é a verdade última e máxima para as nossas vidas e acredito por completo que ela "é a nossa única regra de fé e de prática"! Para mim, este ponto é inegociável. Infelizmente, encontramos diversos posicionamentos relativos ao assunto do "papel" da mulher na igreja, que alicerçam (direta e indiretamente) as suas convicções em movimentos referidos pelo autor, como sejam o feminismo, o movimento carismático e o liberalismo teológico, entre outros. Além disso, a preocupação em "modernizar" ou "contemporanizar" a igreja, tem levado muitos a desviarem-se do registo bíblico e, em muitos casos, a abandoná-lo por completo. Não defendo essa via de abordagem ao tema. Em vez disso, o movimento deve ser exatamente o contrário: regressar à Bíblia, ao seu cerne e essência.
É importante, no entanto, ressalvar que, neste regresso à Bíblia, teremos que desbravar muito terreno que, entretanto, ficou infestado com as ervas daninhas do tradicionalismo extrabíblico. Precisamos admitir que, tal como os fariseus fizeram com o sábado, nós também temos construído elaborados "castelos de cartas", à volta da Lei de Deus, para nos impedir de a violar (quer seja a Sua Lei, quer seja o que achamos que é a Sua Lei). O grande problema é que essas construções não só desvirtuam o sentido original do texto, como nos impedem de ver para além delas. Gastamos as nossas vidas a defender uma estrutura teológica que criámos, à volta da Bíblia, como se da própria Bíblia se tratasse.
Um outro ponto em que concordo com o autor é quando afirma que "uma descrição nunca é uma prescrição." Este é um ponto absolutamente fundamental, para se perceber que, apesar da Bíblia ser a autoridade última para as nossas vidas, muito do que lá está escrito não é prescrição, mas sim descrição. O autor refere, e bem, o exemplo da poligamia, por exemplo com Abraão. O que não faltam são exemplos de descrições que não têm necessariamente que ser (e na maior parte dos casos não são) prescrições, para nós, hoje. Podemos citar outros exemplos como a escravatura, o uso de véu, a unção dos doentes com óleo, etc. Tal como o autor, entendo que fazer a correta identificação e distinção entre prescrição e descrição é absolutamente fundamental, para uma correta hermenêutica. E, deste exercício, não resulta que deixámos de considerar a Bíblia como autoridade, como Palavra de Deus e como verdadeira e inerrante. Simplesmente submetemos a nossa interpretação a critérios hermenêuticos que nos impedem(!) de aplicar essas descrições hoje, como se de um decalque pueril se tratasse.
Mas, não basta fazer a distinção ente descrição e prescrição. É preciso perceber que algumas prescrições resultam de “descrições” subjacentes, implícitas e omissas. Ou seja, frequentemente, as "descrições" não são explícitas e textuais. Por exemplo, a prescrição de que o cunhado deveria tomar por mulher a viúva sem filhos do seu irmão (Deuteronómio 25:5-6), resultava da descrição subentendida da desproteção social em que se encontrava uma viúva nessas condições. A prescrição de que o escravo não deveria procurar proativamente a sua libertação (1 Coríntios 7:20-21) resultava da descrição implícita de que a escravatura era uma base estrutural daquela sociedade. A prescrição de que a mulher deveria ficar em silêncio (I Coríntios 14:34), resultava da descrição subjacente do ruído e desordem, para a qual essa situação estava, certamente, a contribuir. E por aí adiante. Se não identificarmos corretamente este tipo de prescrição e percebermos de que descrição omissa ela decorre, incorreremos em diversos equívocos, como o que aconteceu com a defesa da escravatura, durante séculos, sob o pretexto de ser parte da estrutura de uma sociedade bíblica.
Em relação à forma como Deus criou o homem e a mulher, estou, neste momento a preparar um artigo com uma análise mais detalhada. No entanto, transcrevo aqui um excerto que se refere ao estudo dos termos usados. Pela leitura do artigo "Mulheres na Igreja: Uma Perspectiva Bíblica", fico com a ideia de que o autor, apesar de defender o complementarismo, não tem uma posição extremada, no que diz respeito ao papel atribuído à mulher, no momento da Criação, chegando a usar mesmo a salutar expressão "Eva como um parceiro essencial". Apesar disso, na minha opinião, ainda fica aquém do que o registo da Criação demonstra. O excerto abaixo foi originalmente escrito a pensar num espectro mais abrangente de interpretações tradicionalistas.
"Ajudadora
Em Génesis 1:18 e 20, o termo hebraico que é traduzido como "ajudadora" é "ezer". A Strong's Concordance e a NAS Exhaustive Concordance definem o termo como "uma ajuda, ajudador". De facto, a maior parte das versões, quer em Português, quer em Inglês, traduzem esta palavra como "ajudadora" ou "auxiliadora", "a help" ou "helper". Então, se a palavra parece estar corretamente traduzida, importa verificar que outras utilizações ela tem ou em que outros contextos a mesma aparece, no texto bíblico, para melhor compreender o seu significado e interpretá-la corretamente. Podemos encontrar três contextos da sua utilização: dois de âmbito militar (com uma variante desta palavra, tendo a mesma raiz, "azar") e um referente a Deus.
- Josué 1:14 - "Vossas mulheres, vossos meninos e vosso gado fiquem na terra que Moisés vos deu deste lado do Jordão; porém vós passareis armados na frente de vossos irmãos, todos os valentes e valorosos, e ajudá-los-eis." Aqui, Josué dirige-se às tribos que iriam ficar a Leste do Jordão, mas que, antes de tomarem posse da sua terra, deveriam acompanhar as demais tribos, na conquista da terra, a Oeste do Jordão, e só depois regressar à terra que iriam ocupar. Importa verificar que a ajuda prestada por estas tribos não foi em subserviência ou de forma auxiliar às restantes tribos. Em vez disso, como tinham caminhado, até àquele momento, juntos, em parceria, seria também dessa forma também que iriam entrar na Terra Prometida. Uns não estavam a batalhar em função dos outros, mas todos lutaram da mesma forma, com as mesma armas, com os mesmos objetivos e propósitos.
- I Crónicas 12:1-22 - Este texto refere-se aos valentes de David e a vários combatentes que o auxiliaram nas suas conquistas militares, vindos voluntariamente de várias tribos. Embora este texto se refira a homens que ficaram sob a hierarquia militar de David, importa salientar que o texto também se refere a homens que eram e foram estabelecidos como líderes militares e que batalharam lado a lado, ombro-a-ombro, em pé de igualdade, com David, nas suas várias batalhas.
Nestes dois textos, importa referir que as tarefas atribuídas aos que "ajudaram" militarmente, não eram tarefas distintas, secundárias ou acessórias em relação às que os outros realizavam. Por outras palavras, os que vieram "ajudar" não se limitaram a limpar as armaduras, afiar as espadas e preparar as refeições para as tropas, de modo a facilitar e habilitar a tarefa dos que iriam, de facto, combater. Em vez disso, envolveram-se todos em todas as batalhas, lutaram as mesmas guerras, estiveram em todas as frentes, feriram os adversários comuns e derramaram sangue, como todos os demais.
- O terceiro contexto de utilização deste termo é em relação, nada mais, nada menos, do que ao próprio Deus. Textos como Salmo 33:20, 70:5, 115:9-11, 121:1-2 e tantos outros fazem uso do termo "ezer" para se referirem a Deus como sendo a nossa ajuda, o nosso ajudador, auxílio ou auxiliador. Nada poderia ser mais longe da verdade do que pensar que Deus existe para nos auxiliar nas nossas tarefas e responsabilidades. Ele não existem em função de nós. A verdade é exatamente o contrário disso. Nós é que lhe somos subservientes e a nossa vida é que deve ser vivida em função dele.
Estes três exemplos da utilização do termo "ezer" deixam claro que traduzi-lo e interpretá-lo no sentido da mulher ter sido criada, em função do homem, para o auxiliar ou assessorar numa função que é só dele, devendo ser-lhe subserviente e unilateralmente submissa resulta num reducionismo que nem o texto original, nem o seu contexto, respaldam. Então, se o texto não é suficiente para defender que o termo "ajudadora" não resulta numa clara distinção de tarefas, sendo umas subsidiárias e acessórias da principal, de que forma o devemos entender? Para esta parte da investigação, devemos voltar-nos para outro termo usado.
Semelhante
Génesis 2:18 diz "... ajudadora que seja semelhante a ele." Esta partícula final "que seja semelhante a ele" resulta da tradução do termo hebraico "neged", o qual pode ser definido como "semelhante", "perante", "diante", "perante", "em oposição a", "correspondendo a”; a raíz da palavra, "nagad", significa "ser conspícuo", "to stand boldly". ou seja, a denotação no original é "ousadamente lado a lado". "A palavra hebraica 'neged' (נֶגֶד) pode ser traduzida de várias maneiras, dependendo do contexto em que é usada. As traduções mais comuns incluem:
- Em frente a ou diante de: Usada para indicar algo que está posicionado diretamente à frente ou na presença de alguém ou algo.
- Contra: Pode ser usada para indicar oposição ou contraste.
- Correspondente a: Utilizada para indicar algo que está alinhado ou em correspondência com outra coisa."
"Este termo tem a sua raiz em 'nagad': uma frente, isto é, parte oposta; especificamente contraparte ou companheiro". A maior parte das traduções em Inglês optam pela palavra "suitable" ("adequada" ou "apropriada"), mas outros termos também são usados, como "fit for" ("própria para"), "comparable ("comparável"), "corresponding" ("correspondente"), "complementary" ("complementar") e outros. As versões em português usam termos como "idónea", "esteja como diante", "semelhante", "outra metade", "que lhe corresponda" e "companheira".
De acordo com o significado de "contraparte ou companheira", é legítimo concluir que o versículo não está a referir-se à criação de uma "ajudadora", no sentido de assistente, apoiadora, assessora, servente, secretária ou adjuvante, mas no sentido de uma parceira equivalente, numa relação de companheirismo ao mesmo nível, equiparado. A ideia de que a mulher é semelhante ao homem e de que lhe corresponde aponta para uma igualdade entre ambos, em vez de uma relação de subalternidade. Tratando-se de uma contraparte e companheira, estamos perante conceitos de equivalência, correspondência, equidade, equiparação e paridade, ou seja, igualdade! O termo salienta mais a equiparação do que a distinção, mais a equivalência do que a complementaridade, mais a igualdade do que a diferença.
A ideia de que Deus cria uma contraparte, uma parceira, em pé de igualdade com o homem, é consubstanciada pelo facto de que essa equiparação só é quebrada após a Queda. Depois de terem pecado, Deus declara à mulher que uma das consequências do pecado seria: "o teu desejo será para o teu marido, e ele te dominará". Ou seja, se a dinâmica de domínio surge depois da Queda, é legítimo considerar que, antes da Queda, essa dinâmica não existia e prevalecia um equilíbrio equalitário entre homem e mulher.
O conceito de que homem e mulher foram criados iguais, ainda que com as diferenças anatómicas e fisiológicas que conhecemos é reforçada pelo descrito em Génesis 1:27 "E criou Deus o homem à sua imagem; à imagem de Deus o criou; homem e mulher os criou." Neste primeiro capítulo de Génesis, onde se descreve a Criação da Humanidade de forma mais resumida (a qual é expandida e detalhada no capítulo 2), vemos que Deus se refere a ambos como tendo sido criados à Sua imagem. Nada em Adão é mais parecido com Deus, do que em Eva, nem vice-versa. Ambos têm a mesma identidade, a mesma essência, a mesma natureza. Neste único momento da História, pode falar-se em verdadeira igualdade entre homens e mulheres. É este o propósito divino. Mas levanta-se a questão: Será que foram criados para a mesma finalidade? É natural e evidente que existem funções biológicas que a mulher consegue realizar e o homem não, como a gestação de filhos. Também é possível considerar que o homem, devido à sua constituição física (de uma forma geral), poderá estar melhor equipado para tarefas que exijam maior força física. Mas será que estas diferenças anulam a igualdade, conforme designada por Deus? Será que estas diferenças resultam, necessariamente, numa distinção de tarefas tal que não possa haver partilha equiparada e igual? Será que estas diferenças são suficientes para determinar que o homem exerce autoridade e a mulher obedece, de forma a "auxiliá-lo" na sua liderança?"
Parceria
O conceito de parceria e igualdade entre ambos é reforçado em Génesis 1:28 "E Deus os abençoou, e Deus lhes disse: Frutificai e multiplicai-vos, e enchei a terra, e sujeitai-a; e dominai sobre os peixes do mar e sobre as aves dos céus, e sobre todo o animal que se move sobre a terra.", quando Deus dá a ambos (!) a ordem de dominar, ou seja, de liderar a criação. No contexto original, antes da entrada do pecado, não existe qualquer referência à liderança de Adão. Em vez disso, todos os textos apontam no sentido de estarmos perante uma "liderança partilhada"!
Na Queda (Génesis 3:16), de facto, a parceria é comprometida e o equilíbrio perde-se. Compreendo o que o autor refere como sendo uma "luta pelo poder", na medida em que o termo "desejo", aplicado à postura da mulher, para como o marido, pode, em algumas circunstâncias, ter a nuance de "desejo pelo poder". Todavia, não é assim tão líquido que o seja, nem me parece que essa seja a melhor opção, como o demonstra a sua utilização em Cantares de Salomão 7:10, num contexto bastante mais próximo do relacionamento matrimonial, quando a mulher diz: "Eu sou do meu amado, e o seu desejo é por mim.". Aqui a utilização deste termo significa "desejo de dependência ou busca de conexão", como também tudo indica que terá sido o caso de Génesis 3:16, pelo paralelismo de contexto (relacionamento entre homem e mulher). De facto, a Queda não estabelece uma dinâmica de "luta pelo poder", propriamente dita, mas sim de opressão, diminuição e depreciação da mulher, ao longo dos séculos, na maioria esmagadoras das culturas, como, aliás, o autor refere no seu artigo.
Ordem da Criação
Mas, e então o que dizer sobre a famigerada "ordem da Criação" de I Timóteo 2:13? Não foi Adão criado primeiro do que Eva? Isso não significa que é ele quem deve liderar? Do mero ponto de vista ontológico, naturalmente que não. A ordem da criação é uma ordem cronológica e não lógica. Se a ordem cronológica da criação fosse determinante na ordem lógica de liderança, nunca o Homem poderia dominar sobre toda a demais Criação, uma vez que esta foi criada antes dele. Além disso, existe uma outra grande dificuldade com a assunção de que a "ordem da Criação" é determinante para universalizar e prescrever definições de papéis e lugares da mulher, na igreja. Trata-se do texto de I Coríntios 11:1-16, no qual Paulo fala sobre a necessidade das mulheres, que oravam ou profetizavam, na igreja, usarem véu. A dificuldade é que, neste trecho, Paulo também refere a ordem da criação, nos versículos 8 e 9: "Porque o homem não provém da mulher, mas a mulher do homem. Porque também o homem não foi criado por causa da mulher, mas a mulher por causa do homem." Se, então, a ordem da Criação é determinante para universalizar procedimentos, comportamentos e preceitos, por que razão não se continua a defender que as mulheres usem véu, nas nossas congregações? Se alegarem que é por se tratar de uma prática cultural, então o argumento "ordem de Criação" não tem assim tanta relevância, para universalizar prescrições, porque, como se vê acima, ele também se encontra neste texto. De forma a manter alguma coerência interpretativa, as conclusões que tirarmos sobre o peso da "ordem da Criação", para I Coríntios 11:8-9, têm que ser as mesmas para I Timóteo 2:13.
Mas então, como explicar a referência de Paulo, em I Timóteo 2:13 "
Porque primeiro foi formado Adão, depois Eva.", na sequência de proibir que a mulher ensine homens e exerça autoridade (abusiva)? Se bem entendi, no artigo, o autor parece dar a entender que o termo utilizado aqui (authentein), não sendo o termo mais comum (exoussia) e tendo um peso mais forte ou de domínio, significa que, se a mulher exercer autoridade, estará a abusar de um direito que não é seu. Mas esta é uma forma falaciosa de interpretar o uso daquele termo. O texto não diz que, quando elas exerciam autoridade, isso tornava "o uso de autoridade abusivo", mas sim que elas "não deveriam exercer autoridade abusiva". Pode parecer quase a mesma coisa, mas a diferença é muito grande. Ou seja, não está a "prescrever" que elas não exercessem autoridade, mas sim a descrever que a "autoridade abusiva" não deveria acontecer. E, esta proibição, à luz de todo do registo bíblico, é facilmente aplicável tanto a homens como mulheres. Num artigo que publiquei recentemente, faço uma análise mais detalhada deste ponto:
https://vidaemabundancia.blogspot.com/2024/05/porque-primeiro-foi-formado-adao-depois.html. Transcrevo aqui um breve excerto, sob a forma de quadro, com a proposta de que o contexto das instruções de Paulo a Timóteo é o da propagação dos ensinos gnósticos (ainda que numa fase embrionária, ao qual se designa proto-gnosticismo), na igreja de Éfeso:
"O quadro seguinte propõe uma possibilidade de clarificação da referência que Paulo faz à ordem da Criação, no contexto das suas proibições e mandamentos dirigidos às mulheres, em Éfeso, conforme expresso em I Timóteo 2:11-15.
Texto bíblico | Ensino gnóstico | Ensino bíblico |
---|
vrs.11 - A mulher aprenda em silêncio, com toda a sujeição. | Eva (símbolo de todas as mulheres) foi quem ensinou Adão e teve ascendente sobre ele. | Todos devem sujeitar-se mutuamente e ambos, "com toda a sujeição", às Escrituras. |
vrs.12a - Não permito, porém, que a mulher ensine, | O ascendente de Eva seria um estímulo para as mulheres da igreja propagarem a heresia gnóstica. | Sempre que um alegado profeta (homem ou mulher) não fala a verdade divina, não deve continuar essa atividade. |
vrs.12b - nem use de autoridade sobre o marido | A primazia de Eva sobre Adão deverá ter condicionado a postura autocrática e abusiva (authentein), por parte das mulheres que ensinavam. | Num contexto de sujeição mútua, pessoa alguma deve ter ou pode ter autoridade sobre outra (muito menos de forma abusiva). |
vrs.12c - mas que esteja em silêncio. | Alguns ensinos gnósticos deveriam estar a ser pregados pelas mulheres. | Toda e qualquer heresia deve ser descontinuada. |
vrs.13 - Porque primeiro foi formado Adão, depois Eva. | Uma boa parte dos ensinos gnósticos indicava uma precedência, quer fosse material ou espiritual de Eva, em relação a Adão. | A ordem correta da Criação, de acordo com o registo de Génesis é que Adão foi criado antes de Eva. |
vrs.14a - E Adão não foi enganado | Adão era apresentado como uma vítima da ignorância à qual tinha sido aprisionado, pelo Demiurgo. | Adão pecou conscientemente, sem ter sido enganado. |
vrs.14b - mas a mulher, sendo enganada, caiu em transgressão. | A mulher trouxe conhecimento e luz para a Humanidade (personificada em Adão), na medida em que os seus olhos foram abertos, para o conhecimento, quando comeram do fruto. | A mulher não era portadora de conhecimento ou iluminação, mas foi enganada pela serpente, que a ludibriou e, então, ela caiu em pecado. |
vrs.15a - Salvar-se-á, porém, dando à luz filhos, | A salvação da mulher e de toda a humanidade depende da aquisição do conhecimento de mistérios ocultos que a libertem da ignorância. Desvalorização da função reprodutora (pelos motivos atrás referidos). | Dar à luz não é o que a salva (causa), mas sim o ambiente no qual essa salvação vai ocorrer (meio), em virtude da sua condição biológica. Valorização da função reprodutora. |
vrs.15b - se permanecer com modéstia na fé, no amor e na santificação. | A salvação não depende de fé, nem de comportamentos conformes a um qualquer código de moralidade, muito menos o mosaico. | A salvação depende da fé (na pessoa de Cristo), a qual é acompanhada por uma vida transformada e em transformação. |
"
Consequências
Para tentar compreender a natureza ilógica do argumento que se socorre da "ordem da Criação" para universalizar esta ou aquela proibição à mulher, temos que seguir a linha de raciocínio a que nos obriga esse mesmo argumento. Admitamos que a ordem da Criação, em que Adão é criado em primeiro lugar do que Eva é, de facto, determinante na atribuição e limitação de papéis, na igreja, de forma universal. Se se trata de uma proibição, cuja razão encontra-se enraizada, num momento anterior à existência da igreja, à criação do povo Judeu e até à própria entrada do pecado na humanidade, não há como circunscrever a sua aplicação somente ao facto da mulher não poder ser pastora! Teremos que ser contra as mulheres ensinarem nas escolas, nos seminários, em casa, através de livros (claramente o autor não é contrário a esta possibilidade), etc. Teremos que ser contra as mulheres colocarem questões durante os cultos públicos, teremos que ser contra elas simplesmente falarem, durante as celebrações, teremos que proibir as mulheres de usarem brincos, colares, anéis, tranças, vestidos caros, etc. Dir-me-ão que não podemos ser extremistas. Mas, se as instruções de Paulo tem uma aplicabilidade universal, por estarem alicerçadas no argumento da "ordem da Criação", não há como evitar estas conclusões, sem cair em incoerências interpretativas. Aliás, diga-se de passagem que as posições que assumem este tipo de proibições extremas, de tudo o que é intervenção feminina, conseguem mais coerentes do que as que proíbem à la carte, só o que interessa ou dá mais jeito. Estão redondamente erradas, mas são mais coerentes.
Lei
Se "fica claro" que em I Coríntios 14:34-35, as mulheres devem ficar caladas "conforme ordena a lei" e essa "lei" é a de Deus, de acordo com Génesis 3:16, como defende o autor, então, por que razão andamos sistematicamente a violar a "lei" de Deus, permitindo que as mulheres falem?! Por que razão lhes é permitido que ensinem as crianças, sem ser, por exemplo, por linguagem gestual (para poderem permanecer em silêncio)? Por que razão lhes é permitido dirigirem o louvor, sem ser somente com o uso de instrumentos (para não terem que falar)? Por que razão permitimos que ensinem nos nossos Seminários (alguns), desde que não tenham o título de Pastora? Por que razão permitimos que dirijam Assembleias Gerais, desde que qualquer título que possam possuir não seja do "conhecimento" oficial? Por que razão permitimos essas reiteradas violações dos mandamentos divinos, cada vez que uma mulher emite um som, no contexto da igreja?!
Não será de melhor prática hermenêutica considerarmos que acabámos numa contradição e, por isso, precisamos rever os nossos pressupostos iniciais? Em vez de darmos por nós num "beco sem saída" deste tipo, não será mais razoável admitirmos a possibilidade de Paulo nem sequer se estar a referir à "Lei de Deus"? Afinal, nem bom rigor, ela nunca indica que a mulher deveria ficar calada ou em silêncio, em nenhuma situação. Não será mais provável que Paulo esteja a referir-se a alguma lei, norma, hábito ou prática daquela época, daquele contexto, conhecida dos seus leitores originais? Se assim for o caso, não estamos perante uma prescrição, mas perante uma descrição, ainda que não completamente explícita. E, se for este o caso, em vez de estarmos perante um texto limitativo e proibitivo, estaremos a ler um texto de Paulo, no qual recomenda que a igreja seja sensível às práticas, normas ou leis do seu contexto sociocultural. Se assim for e a igreja exercer essa sensibilidade cultural, nunca irá proibir as mulheres de falarem. Por outras palavras, mal interpretado, o texto ensina exatamente o contrário do que seria o seu objetivo original.
"O aspeto mais curioso desta parte do versículo 34 é a referência final. Paulo diz "como a lei o determina.", o que não deixa de ser intrigante. Normalmente, quando Paulo faz referência à "lei" e usa o artigo definido (grego: ho nomos), está a referir-se à Lei de Deus, conforme expressa no Antigo Testamento, como é o caso de I Coríntios 14:34. É importante referir que, por vezes, ele também usa essa mesma formulação para se referir a outras leis que não a do Antigo Testamento (exemplos: Romanos 2:14,15; 7:21-23; 8:2). Além disso, o próprio termo grego "nomos" não significa somente "lei". A sua amplitude de significados inclui: "uso, costume, lei, a Lei, força ou influência que impele à ação, sistema de pensamento religioso, princípio geral". Ou seja, não fica completamente claro que Paulo se esteja a referir à Lei de Deus, expressa no Antigo Testamento. Aliás, esta noção é reforçada pelo facto de que, na Lei do Antigo Testamento, surpreendentemente não existem referências de que a mulher deveria ficar em silêncio nas assembleias ou reuniões públicas ou, sequer, de que deveria sujeitar-se.
A maior parte dos comentaristas, no entanto, liga a referência que Paulo faz à lei, ao texto de Génesis 3:16, onde se lê: "E à mulher disse: Multiplicarei grandemente a tua dor, e a tua conceição; com dor darás à luz filhos; e o teu desejo será para o teu marido, e ele te dominará." Defendem que a lei que determina que a mulher deve estar em sujeição é o texto de Génesis (o qual, sendo parte do Pentateuco, é considerado como livro da Lei). Desta forma, atribuem ao texto de Paulo um peso equivalente à Lei de Deus, conferindo à sua orientação um carácter sobrenatural, imperativo, absoluto e universal. Mas, este ponto de vista levanta alguns problemas, sendo o principal o facto de que Génesis 3:16 não é uma lei. Além desta dificuldade surge também a questão de Génesis 3:16 não se referir nem a sujeição, nem a conservar o silêncio em qualquer circunstância. Vejamos cada uma destas dificuldades em maior detalhe.
- Em primeiro lugar, importa esclarecer que o que acontece em Génesis 3:16 não é um enunciado legal. Não está a ser proferida nenhuma obrigação, nem nenhuma proibição. Aliás, apesar da Lei já existir antes de ser registada, por tradição oral, somente com Moisés temos o seu estabelecimento e concretização, o que acontece vários milénios depois da Queda e da declaração de Deus na sua sequência (Génesis 3:14-19). O que acontece em Génesis 3:16 não é uma lei de Deus, mas a declaração sobre as consequências que o pecado de Adão e Eva teriam sobre eles próprios, sobre todos os seus descendentes e sobre toda a Criação. O facto de se poder argumentar que a própria Lei também é uma consequência do pecado não resulta na equiparação desta com a declaração das consequências daquele. A própria formulação do texto não tem cariz legal. O texto não fala sobre como as coisas deveriam passar a ser, mas sim como elas passariam a ser. Por outras palavras, as consequências do pecado (não só as descritas em Génesis 3:16, mas todas as demais indicadas ao longo das Escrituras, incluindo a própria morte) são o que resulta do mesmo e, como tal, passíveis de redenção. Por outro lado, a Lei surge para mostrar que o pecado existe e que agride a natureza de Deus, conduzindo-nos até ao Redentor de todas as suas consequências. Portanto, fazer Paulo identificar as consequências do pecado (Génesis 3:16) com a Lei de Deus, que ele tão bem conhecia é, no mínimo, um erro grosseiro de intepretação bíblica, roçando estratégias de manipulação do texto bíblico.
- Em segundo lugar, o conteúdo da declaração de Génesis 3:16, pura e simplesmente, não fala sobre sujeição, nem sobre a mulher permanecer em silêncio em nenhuma circunstância. O texto afirma o seguinte: "Multiplicarei grandemente a tua dor, e a tua conceição; com dor darás à luz filhos; e o teu desejo será para o teu marido, e ele te dominará.". O texto refere a dor e sofrimento que passam a estar presentes na geração de filhos, no desejo ou anseio da mulher que passaria a estar dirigido para o seu marido e no facto de que ele passaria a dominá-la ("mandar, ter domínio, reinar"). Em relação a considerar que este texto fala sobre sujeição, importa referir que essa é uma inferência indevida, que resulta do facto do marido passar a dominar a sua esposa. Entendem alguns que, se ele a domina, é porque ela deve permanecer em sujeição. Esta é uma perversão de pensamento que inquina todo o processo interpretativo. Ao longo de toda a Bíblia, o domínio de uns sobre outros (dentro ou fora do casamento) nunca é visto como algo positivo, espiritual ou desejável. As instruções sobre a sujeição (Novo Testamento) surgem sempre num contexto de mutualidade e nunca admitem a presença de domínio, pela outra parte. Dizer que o marido passaria a dominar a mulher não é sinónimo da sujeição desta. Em vez disso, é uma descrição sumária da opressão, prepotência, violência, abuso e arbitrariedade que, infelizmente, têm caracterizado as relações entre maridos e esposas, ao longo de séculos, na maioria esmagadora das sociedades. E este tipo de cenário nada tem a ver com o conceito de sujeição mútua, voluntária e amorosa que se espera de ambos.
Dos dois pontos acima, conclui-se que não é legítimo afirmar que a "lei" a que Paulo se refere é a Lei de Deus, nem, muito menos, a declaração das consequências da Queda registada em Génesis 3:16. Então, se assim é, a que lei poderá estar ele a referir-se? Seria alguma lei judaica (extrabíblica)? Seria algum uso ou costume daquela época? Seria algum regulamento ou norma social específico de Corinto? Não existe certeza sobre qual a lei a que ele se refere. A única certeza que podemos ter é que ele não se está a referir às Sagradas Escrituras. Atendendo ao que se sabe sobre a forma como a voz feminina era desconsiderada e rejeitada, naqueles tempos e culturas, não é de excluir que essa rejeição fosse registada, de alguma forma, passando a constituir-se como "lei" (entenda-se de acordo com a variedade de nuances acima descritas). Ou seja, aqui, mais uma vez, Paulo está a usar uma referência do contexto sociocultural em que a igreja se insere, para moldar uma forma de estar da igreja, que não fosse ofensiva para a sua cultura. Ora, sendo esta a preocupação de Paulo, compreende-se que: 1) Por um lado, a aplicação desta proibição não pode ser universal, porque as circunstâncias que presidiram à sua escrita já não são as mesmas; 2) E, por outro lado, permanece o princípio universal de que a igreja deve ser sensível à cultura e sociedade em que se insere, adaptando-se em tudo o que lhe for útil e que não contrarie a Palavra de Deus."
Mulheres no Novo Testamento
O autor do artigo refere o exemplo de várias mulheres que, ao longo do Novo Testamento, desenvolveram ministério, nas suas mais variadas vertentes. Tomo a liberdade de partilhar um artigo recente sobre este mesmo tema, mas com um outro ponto de vista:
https://vidaemabundancia.blogspot.com/2025/03/nao-ha-pastoras-no-novo-testamento.html. A leitura que é possível fazer de todas essas mulheres, ao longo das páginas do Novo Testamento, é de que, em enorme contraste com o contexto em que viveram, foram verdadeiras líderes, ministras e pastoras. O peso que a tradição colocou sobre o "título" de Pastor dificulta a nossa compreensão sobre o que estava, de facto, a acontecer no Novo Testamento, no que diz respeito à liderança da igreja. Se repararem, com atenção, com a exceção de Cristo, ninguém (homem nenhum) é identificado como "pastor", desta ou daquela igreja, em todo o Novo Testamento. Para além da referência de Pedro 5:1, em que Pedro se identifica como "ancião" (não é necessariamente um título, mas um descritivo da sua condição), não existe atribuição de títulos a homem nenhum, na igreja. Será assim tão surpreendente que nenhuma mulher também apareça identificada, de forma inequívoca e explícita, como pastora ou presbítera?!
Quando analisamos, em detalhe os vários registos de participação feminina, nas páginas no Novo Testamento, vemos mulheres a ensinar, ministrar, servir, pregar, orar, aconselhar, instruir, liderar, etc. E, se estas não são tarefas pastorais, não sei o que serão tarefas pastorais. De todos os exemplos de mulheres que surgem a liderar, no Novo Testamento, destaco Febe, acerca da qual escrevi o seguinte artigo:
https://vidaemabundancia.blogspot.com/2024/06/lideranca-feminina-romanos-128-161-2.html. Não é só relevante que Febe é identificada como "diaconisa" (
diaconon) e estes eram claramente parte das equipas de liderança pastoral das igrejas (Filipenses 1:1; I Timóteo 3), como também o facto extraordinário de Paulo referir-se a Febe com o termo "
prostatis". Transcrevo aqui um excerto do artigo:
""Prostatis"
O termo masculino "prostates" não existe no texto do Novo Testamento. No entanto, a sua variante feminina "prostatis" existe, surgindo uma única vez, em todo o Novo Testamento, em Romanos 16:1-2: "Recomendo-vos a nossa irmã Febe, que está servindo à igreja de Cencreia, para que a recebais no Senhor como convém aos santos e a ajudeis em tudo que de vós vier a precisar; porque tem sido protetora de muitos e de mim inclusive."
A Concordância de Strong define "prostatis" como "uma guardiã, protetora, patrona". Já o Thayer's Greek Lexicon define em dois sentidos: "a) propriamente, uma mulher colocada sobre outros; b) uma guardiã, protetora, patrona". Ao questionar o ChatGPT sobre o significado do termo "prostatis" obtemos uma resposta como a seguinte:
"1 - Protetora ou Defensora: Em textos gregos antigos, "prostatis" é frequentemente usado para descrever uma mulher que age como protetora ou defensora. Isso pode ser aplicado em contextos familiares, sociais ou políticos.
2 - Patrona: O termo "prostatis" é usado para designar uma mulher que apoia e protege indivíduos ou grupos, agindo como uma patrona. Isso é visto em várias inscrições e documentos antigos onde mulheres ricas ou influentes patrocinavam atividades culturais, religiosas ou políticas.
3 - Figura de Autoridade ou Líder: Em algumas comunidades e textos, "prostatis" refere-se a mulheres que desempenhavam papéis de liderança. Embora menos comum do que o masculino "prostates", existem evidências de que mulheres em posições de autoridade eram referidas dessa forma.
4 - Guardião Legal: Embora "prostates" fosse mais comum nesse contexto, "prostatis" também poderia ser usado para uma mulher que tinha responsabilidade legal sobre outras pessoas, especialmente em situações específicas onde a figura de uma guardiã feminina era necessária.
5 - Divindade Protetora: Em contextos religiosos, "prostatis" podia ser usado para descrever deusas que tinham um papel de proteção ou tutela sobre cidades, famílias ou grupos."
Como facilmente se compreende, o significado indicado no ponto cinco está fora de âmbito do presente artigo, na medida em que Paulo não se estava a referir a Febe como sendo uma divindade. O sentido de guardião legal também pode ser descartado, uma vez que Paulo não se está a referir ao contexto legal. Também não é o mais provável que ele quisesse referir-se a Febe como uma protetora ou defensora em contextos familiares, sociais ou políticos. Isto porque, por um lado não existem elementos no texto que indiquem que Paulo se estaria a referir a esses domínios. Por outro lado, há a considerar o seguinte:
1) Não há conhecimento de que Paulo ou qualquer outro dos irmãos referidos integrasse a família de Febe, ou tivessem tido necessidade de que tal acontecesse;
2) Paulo não tinha necessidade de que o defendessem ou advogassem em seu favor, perante a sociedade, porque sempre o fez autonomamente;
3) Não existem quaisquer elementos que apontem para preocupações ou aspirações de natureza política, por parte de Paulo.
Restam, assim, dois sentidos que podem estar na mente de Paulo ao usar este termo: patrona ou líder. O sentido de patrona tem sido o mais comum (quase em exclusivo), na maior parte das traduções, quer em português, quer em inglês. De facto, em algumas versões, refere-se a ajuda de Febe a Paulo e a outros, concretizada na forma como os acolheu (hospitalidade). Esta parece ser uma opção razoável, na medida em que, pela escassez de infraestruturas como pousadas ou estalagens e devido às abundantes viagens de Paulo e outros crentes, Febe teria aberto as portas da sua casa para acolher vários viajantes e usado os seus recursos para lhes proporcionar a melhor hospitalidade possível. A possibilidade de Febe ter uma hospedaria ou algo semelhante é mais remota, na medida em que não existem elementos no texto que apontem nesse sentido.
Patrona?
Mas, há uma dificuldade com a possibilidade de Paulo usar o termo "prostatis" no sentido de patrona ou auxiliadora. Paulo efetuou três grandes viagens missionárias e uma quarta viagem até Roma. Provavelmente, estas viagens ocorreram durante um período de mais de 10 anos, nos quais Paulo percorreu cerca de 9.000 quilómetros, tendo visitado, pelo menos 18 cidades, além de uma série de outros lugares e localidades. Em todo esse processo, ficou em casa de inúmeros irmãos. Em algumas casas ficou durante uma noite, noutras ficou períodos mais longos. No Novo Testamento temos registo de cerca de meia dúzia de casas onde Paulo ficou (provavelmente aquelas onde permaneceu mais tempo), mas, como facilmente se percebe, terá ficado em muitas mais residências, ao longo desses mais de 10 anos. Por outro lado, ao escrever as suas cartas, Paulo refere-se a vários irmãos e colaboradores, incluindo vários em cujas casas havia ficado e de cujos recursos tinha beneficiado. No entanto, apesar deste cenário de abundantes situações em que foi acolhido e abençoado por tantos, Paulo usa uma única vez o termo "prostatis", em todos os seus escritos. Se ele usasse este termo para indicar alguém que disponibilizou os seus recursos para o ajudar e a outros irmãos, por que razão não encontramos este termo disseminado por todo o Novo Testamento? Por que razão Paulo não se refere a mais ninguém desta forma, com este termo ou até mesmo com o seu correspondente masculino? Será que mais ninguém foi hospitaleiro? Será que mais ninguém o abençoou com ajuda, guarida e cuidado? Não será mais provável Paulo usar uma só vez este termo por estar a referir-se a uma situação igualmente singular? Não será legítimo considerar que Febe poderia ter o dom de liderança e que, desta forma, com o seu exemplo, orientou, inspirou e conduziu vários, inclusive Paulo?
Liderança feminina
Nas onze versões portuguesas deste texto, consultadas para este artigo, três dizem que Febe "hospedou", três identificam-na como "protetora", duas indicam que "ajudou" e outras três usam expressões como "amparo", "grande auxílio" e "grande ajuda". Nenhuma destas opções de tradução admite qualquer indício de liderança por parte de Febe, sendo que três introduzem o conceito de "hospedagem", o qual nem faz parte do original. Nas quarenta e seis versões inglesas, o cenário não é muito diferente. As opções de tradução são as seguintes: quinze vezes como "helper" (ajudadora), oito vezes como "succourer" (socorredora), cinco vezes como tendo prestado assistência "assisted", quatro vezes como "help" (ajuda), três vezes como "benefactor" (benfeitora), três vezes como "leader" (líder), duas vezes como "patroness" (patrona), duas vezes como "friend" (amiga), uma vez como "helpful" (útil), uma vez como "hospitality" (tendo usado de hospitalidade), uma vez como "patron" (patrono) e uma vez como "rule" (regra). Das quarenta e seis versões somente quatro (menos de 10%) admitem a possibilidade de Paulo estar a reconhecer Febe como um exemplo de liderança: duas versões literais que traduzem "prostatis" como "líder", uma tradução moderna que também usa esse mesmo termo e uma versão literal que usa a palavra "regra".
Se Paulo se estivesse a referir, simplesmente, a uma forma de assistência ou ajuda prestada por Febe, poderia ter usado o mesmo termo que usou, com esse sentido, ao pedir que os crentes de Roma a ajudassem ou acolhessem, nesse mesmo versículo. De facto, ao pedir a melhor assistência possível para Febe, Paulo usa o termo "paristemi", o qual significa "colocar ao lado, apresentar, ficar/estar perto, aparecer" e é usado no sentido de "eu trago, apresento, provo, apareço e permaneço, estou presente". Este termo resulta da junção da preposição "para", que tem o sentido de "estar perto, ao lado de", com o termo já acima referido "histemi", que significa "ficar/estar em pé". Este vocábulo não contém o sentido de liderança, mas sim de auxílio, de assistência e ajuda. Uma vez que Paulo usa esta palavra para pedir que auxiliem Febe, o que incluiria, com toda a certeza, serem hospitaleiros e colocarem ao seu dispor recursos materiais e não só, para tornar a sua estadia em Roma a melhor possível, seria natural e expectável que usasse essa mesma palavra, no caso de se referir a ela como tendo exercido esse mesmo conjunto de tarefas e benefícios. Em vez disso, usa uma palavra que, embora tenha a mesma raiz, é única na sua utilização em todo o Novo Testamento."
Por outras palavras e em tom de brincadeira (séria), se Febe se chamasse Fábio, seria um "Paradigma da Liderança Cristã" e objeto de séries de livros, estudos, debates e Conferências, no contexto da liderança da igreja Cristã. Como se chamou Febe, na melhor das hipóteses terá sido uma generosa estalajadeira, de acordo com a maioria das traduções que encontramos.
Complementaridade e Igualdade
Mas, será então que não existe complementaridade entre homens e mulheres? Sem dúvida que há! As nossas constituições biológicas, a nossa anatomia e fisiologia não deixam margem para pensar de outra a forma. Têm papéis diferentes? Sim, aqueles que decorrem e são determinados por essa mesma biologia (evidentes, por exemplo, no domínio desportivo, na gestação, etc). Mas, nem mesmo essa complementaridade pode colocar em causa a igualdade ontológica que existe entre homens e mulheres. Foram ambos criados à imagem e semelhança de Deus e receberam ambos a mesma ordem de domínio sobre toda a criação. Esta parceira igualitária original é restaurada com o Evangelho, no qual a sujeição não é unidirecional, mas mútua, recíproca (Efésios 5:21). Objetivamente, temos que admitir que as diferenças entre homens e mulheres, que os fazem complementares, em nada limitam ou restringem o exercício de qualquer papel, no seio da igreja Cristã.
O texto de Gálatas 3:28 "Não há judeu nem grego; não há servo nem livre; não há macho nem fêmea; porque todos vós sois um em Cristo Jesus." (que no original não tem a partícula "nisto", no seu início) aplica-se à soteriologia (salvação), mas não só. Aliás, seria absurdo se, com a chegada do Evangelho, com o seu poder libertador e restaurador, fossem impostas limitações e restrições à mulher que, em todo o registo do Antigo Testamento, nunca sequer surgem (ficar calada, aprender em silêncio, sujeição unidirecional ao marido, etc). Não há razão bíblica para limitar a equalização entre homens e mulheres somente à possibilidade de ambos acederem à salvação, sendo que a principal razão é exatamente a restauração da igualdade Edénica.
Nada na participação eclesiástica e na sua liderança depende direta ou indiretamente do conjunto de cromossomas com que se nasce. O Novo Testamento é a prova disso mesmo, pelas abundantes evidências de que as mulheres eram reconhecidas e valorizadas, em pé de igualdade com os homens. Perante este cenário, sempre que nos deparamos com limitações ou restrições, temos que procurar saber o seu porquê. Se, na generalidade, as mulheres estão a orar em público, a ensinar, a pregar (profecia), a ministrar, a aconselhar, por que razão se lhes diz para não ensinarem? Por que razão se lhes diz para ficarem caladas? Por que razão se lhes diz para aprenderem em silêncio? Perante esta aparente contradição, alguns dizem: As situações em que elas estão a ensinar são exceções. O problema é que são tantas as exceções que a "regra" fica demasiado comprometida. A outra opção, bastante mais razoável e de melhor prática hermenêutica, é admitir que existiram fatores e circunstancias locais, no contexto daquelas igrejas, que exigiram determinadas orientações. Quando assim é, será possível não cairmos no erro de decalcar prescrições daquele contexto, para o nosso, e, em vez disso, aplicar os princípios que estão por detrás dessas prescrições, como sejam: a ordem e respeito mútuo, a consideração pelo contexto em que a igreja se insere, a sujeição recíproca, o primado da edificação da igreja, etc.
Considerar que existem alguns mandamentos, prescrições, proibições e limitações que se circunscreveram ao contexto e destinatários originais é sinónimo de saudável e humilde hermenêutica. Ao mesmo tempo, essa consideração não é sinónimo de descarte da autoridade bíblica, muito pelo contrário. Admitir que, frequentemente, confundimos o que a Bíblia realmente diz, com aquilo a que a tradição nos habituou também é um passo importante. Perceber que, de ambos os lados deste debate, existem pessoas que estão comprometidas com Deus e com a Sua Palavra, como única fonte de autoridade, e que procuram a melhor forma dela ser interpretada e aplicada é condição sine qua non, para a continuação do debate e para a edificação da igreja. Embora o espectro de sensibilidades sobre esta matéria seja muito grande, todos lucramos quando, em vez de rotular "os outros" (parece-me que o autor teve o cuidado de não o fazer), aprendemos a dialogar. É necessário colocar de parte pressupostos quer tradicionalistas, quer progressistas, e regressar de volta à simplicidade da essência da Bíblia.