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Escondi a Tua Palavra...

Imagem de: https://alimentodiario.net/
O Salmo 119:11 fala sobre uma ação que conduz a um resultado que todo o crente em Jesus deveria pretender alcançar: não pecar contra Deus – “Escondi a tua palavra no meu coração, para eu não pecar contra ti.” Se é certo que a nova natureza que adquirimos quando nos entregamos, em fé, a Jesus Cristo, já não é escrava do pecado, também é certo que isso não significa que deixamos, por completo, de pecar. O pecado já não tem domínio sobre nós (Romanos 6:14) e deixámo-lo como prática habitual e crónica (I João 3:9). Todavia, a luta entre o velho homem e o novo homem ainda nos leva, por vezes, a desobedecer a Deus (Romanos 7). Todo o crente em Jesus, em quem vive o Espírito Santo, deseja fazer a vontade de Deus e, consequentemente, abandonar o pecado. Sempre que assim não é, algo não está certo. O texto do Salmo, mostra a solução para esse propósito. Assim, para o que é nascido de Deus, faz todo o sentido perceber, da melhor forma possível, o que este Salmo ensina e como pode ser aplicado na nossa vida.

Quando o salmista usa o conceito de esconder, está a focar-se numa dimensão íntima, pessoal, privada do nosso relacionamento com a Palavra (...)

O que é esconder a Palavra de Deus no nosso coração?

A ideia de esconder não tem necessariamente a ver com o conceito de ocultar, embora exista uma dimensão privada do conhecimento da Palavra de Deus que é muitas vezes descurada. Valoriza-se muito mais a sua pregação, ensino, anúncio, oratória ou, em algumas situações a simples exibição de conhecimento. Aliás, em muitos contextos, por exemplo no das redes sociais, a Palavra de Deus serve mais objetivos de demonstração pública de nível teológico, do que propriamente para a construção, em conjunto, de pontes, de conhecimento de Deus e de edificação de comunidade. Quando o salmista usa o conceito de esconder, está a focar-se numa dimensão íntima, pessoal, privada do nosso relacionamento com a Palavra, quase como se se tratasse de um ponto recôndito do nosso interior, no qual ela fica residente. E isto é muito importante. Sem isto, a dimensão pública sofre (ensino, pregação, partilha). A ideia de esconder, aqui, é mais do que ocultar. É guardar, manter, preservar.

O facto de ser guardada no coração e não na mente, tem um significado especial. Para os Judeus, o coração representava o ser interior. Não só era entendido como o centro das emoções (um pouco à semelhança do mundo ocidental), mas também como o centro dos pensamentos. No fundo, o coração representa a “autoridade interior”1 que governa as nossas decisões e atitudes. Ou seja, guardar a Palavra de Deus no coração é mantê-la nesse centro de quem nós somos, no âmago da nossa identidade, na fonte de onde saem os nossos pensamentos, palavras, ações e atitudes. É preservá-la na origem de quem somos e de como o somos.


Esconder a Palavra de Deus no nosso coração é mantê-la presente nesse ponto inicial, de onde toda a nossa vivência e interação parte.


Em Provérbios 4:23, lemos “Sobre tudo o que se deve guardar, guarda o teu coração, porque dele procedem as fontes da vida.” Esta ideia das fontes da vida saírem do coração pode nos ajudar a perceber porque é que é aí que a Palavra de Deus tem que ser guardada. Podemos considerar a ideia de uma nascente de água. Aquilo que for diluído nessa água, logo na sua nascente, vai impregnar toda a água que dela sair. Se a água que está nessa nascente é boa, será água boa que chegará a cada um dos seus destinos. Esconder a Palavra de Deus no nosso coração é mantê-la presente nesse ponto inicial, de onde toda a nossa vivência e interação parte. Se ela estiver aí, não há dúvida de que irá chegar e permear toda e qualquer dimensão e dinâmica da nossa existência. Jesus Ilustrou este conceito, quando disse “a boca fala do que está cheio o coração” (Mateus 12:34) e que o que contamina o Homem não é o que entra nele (comida), mas o que sai da sua boca (Mateus 15:11).

Esse ponto íntimo de quem somos é onde estão os nosso valores mais básicos e fundamentais. É onde residem os nossos pressupostos e estruturas de pensamento. Onde se formam os mecanismos de resposta e decisão inatos ou instintivos. É nesse ponto que se originam aquelas palavras, pensamentos e ações que não precisam de grande, nem demorada, reflexão para surgirem. É onde residem os nossos automatismos de reação, os nossos gostos, as nossos sentidos de bom, mau, bonito, feio, certo, errado, benéfico, prejudicial, etc. É aí que encontramos os nossos medos, os nossos anseios, as nossas mágoas, as nossas expectativas, os nossos propósitos. É a fonte mais íntima onde reside e de onde surge quem nós realmente somos. É o ponto das “juntas e medulas” de que fala o escritor da carta aos Hebreus.


Saber muito sobre a Palavra de Deus não resulta, necessariamente, em viver de acordo com aquilo que ela ensina.

Como se consegue fazer isso?

Uma simplificação do conceito de esconder a Palavra de Deus no nosso coração aponta no sentido de praticarmos a memorização dos textos bíblicos. Embora, a memorização da Bíblia seja importante e necessária, é somente uma parcela deste processo. Apostar tudo na memorização da Palavra de Deus, para não pecar, não surtirá grandes efeitos práticos, na medida em que a memorização facilmente se tornará num exercício mecânico, teórico e meramente académico. Saber muito sobre a Palavra de Deus não resulta, necessariamente, em viver de acordo com aquilo que ela ensina. Aliás, é possível decorar imensas porções da mesma, sem sequer crer na sua autoridade sobrenatural ou nos seus significados espirituais. Ou até, por exemplo, citá-la, em simultâneo com algum ato ou pensamento pecaminoso. O processo de esconder a Palavra de Deus no coração é mais complexo do que simplesmente decorá-la.A ideia de esconder inclui um sentido de permanência, porque o que está escondido é para ficar sempre ali, não é para ser removido. Uma das dificuldades que temos em garantir que assim acontece é o facto de que a Palavra vai-se erodindo do nosso interior. Dependendo da “profundidade” a que está guardada e da frequência com que a sua presença é alimentada, diversos fatores contribuem para o seu desgaste e desvanecimento. Assim, a Palavra de Deus não deve simplesmente ficar no nosso coração, ela tem que passar a fazer parte do próprio coração. Ou seja, não basta tê-la ou sabê-la, é preciso que ela impregne quem eu sou. É preciso que a Palavra de Deus passe a fazer parte de mim, das minhas ideias, dos meus valores, dos meus princípios, das minhas prioridades, dos meus centros de atenção, das minhas dinâmicas diárias, dos meus processos de pensamento, dos meus pressupostos, das minhas estruturas mentais e emocionais, dos meus objetivos. Enquanto esta integração não acontece, a Palavra de Deus até pode estar presente na minha vida, mas permanece como um corpo estranho, numa repartição de quem eu sou, sem grandes implicações reais.

(...) a direção geral em que essa nossa moldagem e construção vai ocorrendo é, normalmente, divergente do sentido em que os princípios e valores bíblicos apontam.

Desde que nascemos, juntamente com a nossa genética, o ambiente em que crescemos vai exercendo pressão sobre as nossa moralidade, ética, emoções, relações socias, etc. Vamos sendo moldados e condicionados a atribuir valor a algumas coisas e a outras não. Vamos construindo os nossos princípios e valores. Os conceitos de bom/mau, bonito/feito, certo/errado, benefício/prejuízo, vão sendo desenvolvidos conforme o que vamos apreendendo daquilo que nos rodeia. A nossa estrutura interior vai sendo moldada pela influência dos nossos pais, família em geral, amigos, escola, sociedade, colegas, pelo que lemos, pelo que vemos e ouvimos, pelas experiências que vamos vivendo, etc. Todavia, a direção geral em que essa nossa moldagem e construção vai ocorrendo é, normalmente, divergente do sentido em que os princípios e valores bíblicos apontam. A tendência natural de evolução individual não ocorre num sentido de crescente aproximação à Palavra de Deus. Em vez disso, a Bíblia vai nos colocar em confronto com vários valores e princípios que nos são absolutamente contranatura. Por exemplo, enquanto que a tendência humana natural é o egocentrismo, a Bíblia aponta para o altruísmo; enquanto que o Homem deseja a vingança, a Bíblia aponta para o perdão; enquanto que a forma de resolução tendencial de desentendimentos é o conflito, a Bíblia desafia a pagar o mal com o bem; enquanto que a tendência natural da humanidade é a corrupção (seja pelo dinheiro, pelo poder, pela fama), a Bíblia apresenta a santidade como padrão de vida. Não é de estranhar, portanto, a elevada dificuldade de integração dos valores bíblicos, na nossa vivência.

Seria interessante se conseguíssemos elaborar uma escala de integração da Palavra de Deus em nós, em que 0% seria nenhuma integração (...) e 100% a total integração (...).

Esconder a Palavra de Deus no nosso coração é promover uma tal integração dessa palavra no cerne da nossa identidade, que todos esses valores que fazem parte de nós começam a ser substituídos pelos novos, os bíblicos. Como facilmente se compreende, este não é um processo fácil. É um processo que acarreta custos, exige energia, concentração e um conjunto de ações deliberadas e conscientes, da nossa parte. A aumentar esta dificuldade acresce que as tais forças e pressões que moldaram a nossa identidade, ao longo do tempo, não deixam de exercer a sua influência no momento em que decidimos aplicar-nos a esconder a Palavra de Deus no nosso coração.

Seria interessante se conseguíssemos elaborar uma escala de integração da Palavra de Deus em nós, em que 0% seria nenhuma integração (o que só por si é difícil acontecer, porque, pelo menos nas sociedades ditas cristãs, existem sempre alguns valores bíblicos que nos influenciam, ainda que de forma residual) e 100% a total integração (que corresponderia à estatura do varão perfeito – Jesus – Efésios 4:13). Uma escala desse tipo levantaria uma série de questões muito interessantes. Em que percentagem estaria a nossa integração individual? Em que percentagem dessa integração começaria a surtir, de facto, algum efeito, do ponto de vista da nossa resistência ao pecado? Em que percentagem começaríamos a estar, realmente, preparados para partilhar a razão da nossa esperança? Em que percentagem é que essa integração começaria a ser visível para aqueles com quem convivemos? Qual a real variação ocorrente nos crentes cujo contacto com a Palavra de Deus acontece, exclusivamente, durante 40 minutos (na melhor das hipóteses), no Domingo? Em quanto aumentaria esta percentagem se nos dispuséssemos a ler e meditar na Palavra, de facto, de dia e de noite, todos os dias? Como é evidente, não se consegue quantificar este nível de integração. Mas, algumas coisas são certas: Ninguém está num nível de integração completa, a 100%. Logo, todos precisamos continuar a investir no processo. Devido às pressões e erosões a que estamos sempre sujeitos, a percentagem nunca está estagnada. Ou está a aumentar, ou está a diminuir. Parar de ler, meditar, refletir, dialogar com a Palavra não equivale a manter a sua presença em nós. Equivale a começar a perdê-la. Nunca estamos tão mal que não seja possível começar ou retomar o processo de aumento dessa percentagem. A Palavra está disponível e, começando com poucos minutos por dia podemos investir nesta integração que nos é tão vital.

não podemos desprezar a responsabilidade que temos de investir, propositadamente, no estudo e reflexão da Bíblia.

O Salmo 1 fala de um homem que é feliz e que tem o seu prazer na Lei do Senhor, meditando nela de dia e de noite (Salmo 1:2). Esta é a chave para esconder a Palavra de Deus no nosso coração. A fonte da nossa satisfação tem que ser a Palavra de Deus e meditarmos nela de dia e de noite. Podemos considerar que este é um processo que se autoalimenta: a satisfação na Palavra de Deus é alimentada pela meditação nela e, por sua vez, quanto mais se medita nela, maior é a nossa satisfação na mesma. O conceito de meditar na Palavra de Deus tem que ser central na vida do Cristão! A meditação não é o tal exercício académico de simplesmente a memorizar, nem, por outro lado, uma qualquer atividade mística de algum tipo de transe meditativo. Trata-se do exercício intelectual e racional de reflexão sobre o que Deus nos diz na Sua Palavra. Meditar é dialogar internamente, é pensar, é ousar questionar, é procurar entender, é desafiar o que não se entende, é escavar e investigar mais, é usar a razão para compreender e integrar. Claro que todo este processo tem que ocorrer numa atitude de sujeição ao Autor dessa mesma Palavra (“Abre meus olhos, para que eu veja as maravilhas de tua lei.” - Salmo 119:18). Mas, não podemos desprezar a responsabilidade que temos de investir, propositadamente, no estudo e reflexão da Bíblia. Afinal, Deus dotou-nos de capacidade intelectual, também para isso mesmo. A Bíblia refere por inúmeras vezes a necessidade de nos relacionarmos com Deus e com a sua Palavra através da meditação (“Não se aparte da tua boca o livro desta lei; antes medita nele dia e noite, para que tenhas cuidado de fazer conforme a tudo quanto nele está escrito; porque então farás prosperar o teu caminho, e serás bem sucedido.” – Josué 1:8) e com a nossa inteligência (“Amarás o Senhor, teu Deus, de todo o teu coração, de toda a tua alma e com toda a tua inteligência” - Mateus 22:37); Paulo diz-nos que temos a mente de Cristo (I Coríntios 2:16); o nosso serviço e adoração a Deus devem ser racionais (Romanos 12:1); o exercício necessário para filtrar o que não convém é, essencialmente um exercício do pensamento (Filipenses 4:8). Portanto, existem abundantes referências bíblicas relativas à extrema necessidade de exercermos as nossas faculdades intelectuais, ao serviço de Deus e isso é absolutamente fulcral para que a Sua Palavra seja, de facto, escondida no nosso coração.

(...) a Palavra de Deus nunca esteve tão próxima de cada um de nós e, ao mesmo tempo, nunca estivemos tão longe dela.

Como facilmente se compreende, não podemos meditar, refletir ou pensar sobre aquilo que não conhecemos. Quando tentamos fazer isso, dessa forma, não estamos a meditar, estamos a especular. João diz-nos, no seu evangelho “Mas aquele Consolador, o Espírito Santo, que o Pai enviará em meu nome, esse vos ensinará todas as coisas, e vos fará lembrar de tudo quanto vos tenho dito.” (João 14:26). Como é evidente não podemos ser lembrados daquilo que nunca tomámos conhecimento, nem podemos ser ensinados (esclarecidos) sobre o que nem sabemos que existe. É fundamental ler a Bíblia, conhecê-la, ouvi-la. Hoje, é muito difícil existirem desculpas válidas para não termos acesso à Palavra de Deus. Para além de toda a abundância de exemplares impressos, em inúmeras versões e idiomas, não faltam versões digitais, disponíveis na internet e através de aplicações para dispositivos móveis. Num certo sentido, a Palavra de Deus nunca esteve tão próxima de cada um de nós e, ao mesmo tempo, nunca estivemos tão longe dela. Preferimos passar duas horas, por dia, a fazer “scroll” numa rede social qualquer, do que tirar 15 minutos para ler um texto bíblico na “app” que já podíamos ter instalado no telemóvel. É neste ponto que o compromisso de lê-la é tão importante para todo o crente. E esse é o primeiro passo. Este é o combustível que permite a carburação do processo de integração da Palavra no nosso coração. Se ela não estiver presente, se não a lermos e ouvirmos, não a podemos assimilar, não a podemos esconder no coração. A partir daí, é necessário progredir no compromisso de integrá-la na nossa vida e identidade, conforme vimos acima. É preciso torná-la numa tal presença constante que a nossa própria cosmovisão vai sendo modificada, os nossos valores fundamentais vão sendo transformados e os nossos princípios basilares vão sendo gradualmente substituídos. Enquanto isto não acontece, o resto também não chega a acontecer. Não existe real transformação de quem somos. Sem esse processo, o que poderá acontecer, quando muito, é um condicionamento, mais ou menos moralista, de alguns comportamentos e atitudes exteriormente observáveis. Mas, isso não nos impede de pecar. Isso não nos capacita a uma vida cada vez mais próxima da vontade de Deus. Permite simplesmente camuflar uma vida que não se aproxima do que Deus pretende, para fazer parecer que sim. Nada mais do que isto.

No fundo, é este processo de esconder a Palavra de Deus no nosso coração que habilita aquilo de que Paulo falava em Romanos 12:2: uma não conformação com o mundo e uma renovação da mente - “E não sede conformados com este mundo, mas sede transformados pela renovação do vosso entendimento, para que experimenteis qual seja a boa, agradável, e perfeita vontade de Deus.


Quais os resultados?

 

O processo paulatino de substituição de valores vai resultar naquilo que Paulo disse aos Gálatas - “Já estou crucificado com Cristo; e vivo, não mais eu, mas Cristo vive em mim; e a vida que agora vivo na carne, vivo-a pela fé do Filho de Deus, o qual me amou, e se entregou a si mesmo por mim.” (Gálatas 2:25) e naquilo que, de certa forma, João Batista também pretendia que acontecesse - “É necessário que ele cresça e que eu diminua.” (João 3:30). Paulo também se refere a uma dimensão prática deste processo de substituição de valores, quando afirma “Mas o que para mim era lucro, passei a considerar perda, por causa de Cristo.” (Filipenses 3:7).

(...) a integração da Palavra de Deus nas mais íntimas fibras do nosso ser, transforma quem somos e modifica a nossa própria vontade.

O Salmo que lemos no início diz que esconder a Palavra de Deus no nosso coração, capacita-nos a não pecar. Parece-me importante perceber que a ideia de pecado é abrangente. É mais do que os habituais não matar, não roubar, não adulterar. Pecar é falhar o alvo, é ficar aquém da vontade de Deus. É mais do que fazer o mal. É também não fazer o bem, quando se poderia fazê-lo. É tomar decisões, que até podem não ser erradas per si, mas com motivações que o são. É não fazer tudo para a glória de Deus. É escolher o caminho mais fácil, em vez do melhor, o mais agradável, em vez do mais benevolente, o mais lucrativo, em vez do mais generoso. Ao escondermos a Palavra de Deus no nosso coração, ficamos capacitados a fazer melhor do que isto, a acertar mais o alvo, a ficar menos aquém da Sua vontade, a pecar menos. Isto porque, como vimos acima, a integração da Palavra de Deus nas mais íntimas fibras do nosso ser, transforma quem somos e modifica a nossa própria vontade. E esta transformação tem implicações diretas na forma como nos aproximamos, gradualmente, da vontade de Deus.

Tiago escreve que nos devemos sujeitar a Deus, resistir ao diabo e este fugirá de nós (Tiago 4:7). A sujeição a Deus não é mais do que obedecer-lhe em tudo. Ora, não é sequer possível obedecer-lhe se não soubermos o que Ele nos manda. E não é provável obedecer-Lhe se o que Ele nos manda não faz parte de nós. Ser-Lhe-emos tão mais sujeitos e obedientes quanto maior e melhor for a integração da Sua Palavra na nossa identidade. No fundo, este texto de Tiago não está a falar sobre dois momentos, em que, primeiro nos sujeitamos a Deus e, depois, resistimos ao diabo. Em vez disso, trata-se tudo de um só momento: na medida em que Lhe estamos sujeitos, a nossa resistência ao diabo é consolidada e garantida. A sujeição a Deus é a própria resistência ao diabo! Repare que não existe a conjunção “e” (no original) entre sujeitar-se a Deus e resistir ao diabo. No versículo de Tiago 4:7, de facto, os dois momentos que existem são os seguintes: 1) Sujeitai-vos a Deus, resisti ao diabo; 2) e ele fugirá de vós. Esta dinâmica está presente, por exemplo, nos dias da tentação de Jesus, no deserto, quando a defesa de Jesus não é mais do que a presença plena da Palavra de Deus em si mesmo – “está escrito” ou “as Escrituras Sagradas afirmam” (Mateus 4:1-11,Lucas 4:1-13).

Ao transformar a minha identidade, as minhas inclinações contrárias a Deus vão sendo redimidas e a resistência torna-se possível.

É na medida em que os conteúdos da Palavra de Deus estão integrados na minha vida e fazem parte do meu eu, que fico capacitado para resistir àquilo que o diabo mais quer: fazer-me cair, fazer-me pecar, fazer-me falhar, fazer-me ficar aquém. Assim, fica claro que resistir ao diabo não se trata de uma capacidade especial de que somos dotados, pelas nossas próprias forças, habilidades, méritos, esforços, mas sim de uma capacitação unicamente resultante da profusa presença e ação da Palavra de Deus em nós. Ao transformar a minha identidade, as minhas inclinações contrárias a Deus vão sendo redimidas e a resistência torna-se possível. Por outras palavras e em termos mais simples, se estou a sujeitar-me a Deus, estou a obedecer-Lhe. Se lhe estou a obedecer, não estou a pecar. E isso é resistir ao diabo e ao seu propósito de fazer-me pecar.

Tiago acrescenta que ele fugirá de nós. Uma forma simples de percebermos esta “fuga” é se pensarmos no que Pedro diz: “Sede sóbrios; vigiai; porque o diabo, vosso adversário, anda em derredor, bramando como leão, buscando a quem possa tragar;” (I Pedro 5:8). Ou seja, o diabo procura “a quem possa tragar”. Por outras palavras, ele procura o “elo mais fraco”, aquele que vai dar menos luta, que vai cair mais facilmente. O crente sujeito a Deus, de cuja vida a Palavra de Deus tomou conta, cujos valores basilares foram remodelados pela Escritura não é uma presa fácil. Esse vai dar luta, vai resistir. Então, ele foge (ainda que “por algum tempo”, como aconteceu com Jesus – Lucas 4:13), à procura de outro.

Meditar não se resume a apreciar a sua beleza ou a ficar embevecido pela sua poesia e retórica. É escavar, explorar, investigar.

É preciso refletir sobre a Palavra, colocar-lhe questões, procurar soluções, aprender com os exemplos de outros que viveram situações semelhantes às que vivemos, explorar os “porquês”, pesquisar os “comos”, encontrar os “para quês”, aceitar os desafios daquilo que não entendemos. Enquanto não fazemos isto, não estamos propriamente a meditar. Meditar não se resume a apreciar a sua beleza ou a ficar embevecido pela sua poesia e retórica. É escavar, explorar, investigar. Enquanto não nos dispomos a assumir este tipo de compromisso, muito da Palavra permanecerá como algo que temos ou sabemos, mas que não faz parte de nós. Quando assumimos esta dinâmica de meditação na Palavra, a pouco e pouco, os seus valores e princípios vão começando a fazer sentido. Vão começando a fazer mais sentido do que os que lhe são contrários e que defendíamos até àquele momento. E é a partir daí que começamos uma real e genuína integração dos mesmos, na nossa identidade, porque os aceitamos e permitimos que nos transformem. É a partir desse momento que as nossas decisões começam a ser definidas pelos conteúdos bíblicos. E não me refiro somente àquelas decisões em que temos tempo para pensar, para pesar os prós e os contras. Refiro-me, acima de tudo, a um nível mais básico de decisões. Àquelas decisões que nos são inatas, que tomamos por instinto. Àquelas sobre as quais nem precisamos pensar, porque os valores que temos incutidos na nossa mente levam-nos a decidir dessa forma, quase instantaneamente. É o momento em que decidimos responder a alguém que nos magoou, com uma palavra áspera; é o momento em que desejamos a vingança; é o palavrão que dizemos ou pensamos, quando alguém não cumpre as regras de trânsito; é a nossa satisfação quando ouvimos alguém falar mal de um terceiro; é a inveja com que olhamos para o que os outros têm; é o desejo que alimentamos, por alguém, fora do plano de Deus; é a cedência repetida ao nosso vício predileto; e por aí adiante.

(...) a partilha da nossa fé fica comprometida se a Palavra de Deus não está integrada na nossa vida.

O escritor da carta aos Hebreus, expressou a dificuldade com que se deparava, em relação aos crentes que não amadureciam na sua fé e caminhada com Deus, quando escreveu “Embora a esta altura já devessem ser mestres, precisam de alguém que ensine a vocês novamente os princípios elementares da palavra de Deus. Estão precisando de leite, e não de alimento sólido! Quem se alimenta de leite ainda é criança e não tem experiência no ensino da justiça. Mas o alimento sólido é para os adultos, os quais, pelo exercício constante, tornaram-se aptos para discernir tanto o bem quanto o mal.” (Hebreus 5:12-14). Se não desenvolvemos o constante exercício de ler, meditar, integrar e aplicar a Palavra de Deus ao nosso coração, não crescemos, não amadurecemos. É esta maturidade que nos permite um grau maior de resistência contra o pecado e um reforço do nosso compromisso com a vontade de Deus e com o próprio processo de santificação. Além disso, por exemplo, a partilha da nossa fé fica comprometida se a Palavra de Deus não está integrada na nossa vida. Pedro disse “santificai em vossos corações a Cristo como Senhor; e estai sempre preparados para responder com mansidão e temor a todo aquele que vos pedir a razão da esperança que há em vós” (I Pedro 3:15). Santificá-lo como Senhor é coloca-Lo como o dono e autoridade na nossa vida e isso só acontece quando vivemos em obediência à Sua Palavra escondida e integrada na nossa identidade. Só isso é que nos dá a preparação para responder acerca da esperança que há em nós. Na realidade, não partilhamos o que lemos, ouvimos, sabemos ou memorizamos. Partilhamos o que somos!

Numa relação estreita com a resistência contra a tentação e o pecado, a Palavra de Deus, integrada no nosso ser, é quem realiza uma série de outras operações. Ela dá vida, porque é vida – “É o Espírito quem dá vida; a carne em nada se aproveita; as palavras que Eu vos tenho dito são Espírito e são vida.” (João 6:36). Ou seja, não existe verdadeiro avivamento, sem a Palavra presente na nossa vida. Ela é quem nos lava e purifica – “Santifica-os na verdade; a tua palavra é a verdade.” (João 17:17) e “Vós já estais limpo pela Palavra que vos tenho falado.” (João 15:3). Por isso, não existe santificação sem a Palavra de Deus. A Palavra integrada na nossa vida, ensina, repreende, corrige, educa, aperfeiçoa e habilita para toda a obra boa “Toda a Escritura é inspirada por Deus e útil para o ensino, para a repreensão, para a correção, para a educação na justiça, a fim de que o homem de Deus seja perfeito e perfeitamente habilitado para toda boa obra.” (II Timóteo 3:16-17). É essa Palavra que nos liberta “E conhecereis a verdade e a verdade vos libertará” (João 8:32). É esta Palavra que, quando integrada no mais íntimo do nosso âmago, discerne os nossos pensamentos e propósitos “Porque a palavra de Deus é viva, e eficaz, e mais cortante do que qualquer espada de dois gumes, e penetra até ao ponto de dividir alma e espírito, juntas e medulas, e é apta para discernir os pensamentos e propósitos do coração” (Hebreus 4:12).

 

Em conclusão

 

Esconder a Palavra de Deus no nosso coração é mantê-la residente no ponto mais profundo de quem somos. É permitir que ela transforme e substitua os nossos valores e princípios mais básicos e fundamentais, de tal forma que passe a ser parte integrante da nossa identidade. Fazemos isto através do contacto persistente com a Palavra, ao lê-la, ouvi-la, meditar sobre ela, refletir, dialogar, questionar, etc. Os resultados serão uma crescente solidificação do caráter de Cristo em nós, uma acrescida resistência ao pecado e uma consequente melhoria do nosso alinhamento com os planos e propósitos de Deus para a nossa vida.

 

Notas:

  1. http://jaiideias.blogspot.com/2009/11/coracao-em-hebraico.html

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