Ruído
Neste capítulo, Paulo explica a importância de valorizarem a profecia, como forma de contribuir para o crescimento e amadurecimento da igreja, sustentando que o seu exercício exige a inteligibilidade dos conteúdos transmitidos. Esta característica da profecia (proclamação, pregação, anúncio, partilha da Palavra de Deus) torna-a útil para toda a igreja, porque a sua compreensão é colocada ao alcance de todos. Por outro lado, o exercício do dom das línguas (quer Paulo estivesse a referir-se a idiomas existentes, quer se tratassem de línguas ininteligíveis), levantava a dificuldade de não se entender o que estava a ser dito, salvo se houvesse interpretação.
Na parte final deste capítulo (versículos 34 e 35), ainda com a preocupação de que tudo decorresse sem confusões, nem desordem (é com essa nota que o capítulo também termina), Paulo refere-se às mulheres que participavam nas reuniões de igreja, para dizer que deveriam "ficar caladas, na igreja". "Que as mulheres se conservem caladas nas igrejas, porque não lhes é permitido falar; mas estejam submissas, como também a lei o determina. Se, porém, querem aprender alguma coisa, perguntem em casa ao seu próprio marido; porque para a mulher é vergonhoso falar na igreja." 1 Coríntios 14:34,35
Este tem sido um versículo muito polémico, ao longo dos tempos, na medida em que, sem uma adequada compreensão do que está em causa, é propenso a ser catalogado e descartado como um mandamento machista e misógino. Não podemos perder de vista o facto de que o próprio apóstolo Paulo, nesta mesma carta, dá instruções sobre como deveriam portar-se as mulheres (e os homens) da igreja quando orassem ou profetizassem em público (nas reuniões da igreja). Se se pode argumentar que é possível orar em silêncio, será difícil defender a possibilidade de se pregar (profetizar) em silêncio. Assim, se a proibição de as mulheres falarem na igreja for de aplicação universal (em todos os lugares e épocas), teremos o grave problema de lidar com uma clara contradição, dentro da mesma carta de Paulo. Alguns argumentam que as profetizas referidas em I Coríntios 11 eram tomadas pelo Espírito e, portanto, seria uma atividade sobre a qual não teriam controlo, pelo que não se lhes aplicaria esta proibição. Mas, esta linha de argumentação assume que a atividade de profecia poderia ser um exercício involuntário de proclamação da Palavra, quase como se se tratasse de um estado de êxtase ou transe, o que é incompatível com tudo o que Paulo descreve sobre o exercício dos dons. Ao longo de todo o capítulo 14, a sua tónica é a de enfatizar o valor de profecia como exercício de comunicação inteligível, consciente e com entendimento da Palavra. Além disso, no versículo 32 do capítulo 14, Paulo diz expressamente "E os espíritos dos profetas estão sujeitos aos profetas.", reforçando a ideia de que o profeta agia e falava de forma consciente, inteligente e sóbria.
Antes de procurarmos entrar um pouco mais a fundo na compreensão deste texto, poderá ser útil recorrer à mesma estratégia acima indicada, para começar a perceber um pouco do contexto onde se insere. Ou seja, se Paulo tinha uma preocupação com a ordem durante as reuniões da igreja, no sentido de que não fossem momentos de confusão, será legítimo pensar que as mulheres estariam entre as principais contribuidoras para o ruído? Seria possível que a liberdade que desfrutavam na igreja, em contraposição com o que acontecia, por exemplo, na sinagoga ou até mesmo na sociedade de um modo geral, as tivesse motivado a um nível de participação e intervenção que não estaria a ser benéfico para as reuniões? Embora, neste ponto, só possamos especular, não é completamente impossível que este pudesse ser o cenário. No entanto, parece haver mais alguma coisa por detrás desta orientação de Paulo, na medida em que ele se refere a uma proibição e ao facto de tal prática ser considerada vergonhosa.
A primeira questão que surge é: Será que Paulo está a falar para todas as mulheres da igreja ou só para as que são casadas? Apesar do versículo 34 e o final do 35 parecerem generalizar para todas as mulheres, quando Paulo manda que questionem os maridos, em casa, parece circunscrever esta proibição às mulheres que seriam casadas. Além disso, a sua referência à submissão, também aponta para o contexto do casamento e não para a generalidade dos relacionamentos entre homens e mulheres, na igreja. Se é relevante que o foco desta orientação se encontra nas mulheres casadas, então é necessário que façamos aqui um compasso, para perceber que a dinâmica e estrutura do casamento do primeiro século tem muito pouco a ver com aquilo que vivemos hoje, particularmente no mundo ocidental. Perceber esta distância cultural entre os casamentos atuais e os daquela época é fundamental para enquadrar devidamente não só esta, mas uma série de instruções bíblicas dadas ao casal.
Assimetria
Talvez a principal característica dos casais do primeiro século, numa cultura greco-romana e ainda mais na cultura judaica, com um acentuada clivagem social entre homens e mulheres, é a sua assimetria ou desigualdade. Se achamos que hoje ainda não existe igualdade ou equiparação de valor e consideração entre homens e mulheres, é fácil compreender que, há dois mil anos atrás, esse desnível ainda seria mais marcado:
- Normalmente, os homens casavam mais velhos do que elas. Eles poderiam ter entre 18 e 25 anos, ao passo que elas, a partir dos 12 anos já eram consideradas como aptas para casar (podendo até estarem prometidas, antes dessa idade). A diferença de idade entre ambos potenciava um relacionamento quase como que de paternidade dele, para com ela, o que era determinante numa relação de elevada dependência dela para com ele.
- O poder económico pertencia ao marido. Era ele quem trazia os bens, para o casamento, era quem ganhava os recursos para a subsistência da família e era o dono de todas as propriedades da família. Em alguns contextos, até a esposa era considerada propriedade sua.
- Ele era o único que poderia ter alguma oportunidade de obter escolaridade formal, apesar de só alguns homens aprenderem a ler e a escrever. Atendendo ao facto de que elas casavam muito novas e começavam a ter filhos pouco tempo depois, não lhes era proporcionada qualquer oportunidade para aprenderem a ler, nem escrever.
- O próprio estatuto social dos homens e mulheres era marcadamente desfavorável para a mulher. A opinião delas era completamente irrelevante e desconsiderada, na generalidade da sociedade.
- As condições de higiene feminina e principalmente as de planeamento familiar eram tão desvalorizadas que a própria saúde da mulher ficava comprometida, o que acrescia à sua vulnerabilidade.
- Os casamentos eram, habitualmente, decididos pelos pais dos noivos. Se, em algumas circunstâncias, o noivo poderia ter alguma palavra a dizer na escolha da sua companheira, ela não tinha a mesma possibilidade. Ou seja, normalmente as jovens/adolescentes entravam no casamento sem ter sido essa a sua decisão e sem terem tido qualquer papel na escolha do homem com quem iriam passar o resto das suas vidas.
Os pontos acima indicados marcam um desnível no casal que ajuda a compreender o porquê de algumas orientações bíblicas dadas às mulheres e aos homens, no contexto do casamento. O cenário acima descrito não é o mesmo do casamento atual, o qual acontece entre um homem e uma mulher cada vez mais próximos, a todos os níveis. Assim sendo, as orientações bíblicas têm que ser interpretadas à luz do seu contexto original, de modo a permitir uma adequada transposição dos valores e princípios eternos, para os tempos atuais, em vez de se fazer um decalque textual e literalista da "letra da lei". Quando não existe este cuidado, incorremos no pecado de fazer aplicações atuais completamente desadequadas e que, no fundo, não fazem justiça ao espírito do que se encontra registado no texto sagrado.
É possível que as características do casamento naquele tempo tenham pesado na orientação de que as mulheres ficassem caladas na igreja e não contribuíssem para o ruído e confusão? É possível que o facto delas não terem tido oportunidades de obter algum grau de escolaridade dificultasse o acompanhamento do que era apresentado nas reuniões de igreja e isso lhes suscitasse muitas dúvidas? É possível que as mulheres, eventualmente as mais novas, se desligassem um pouco do que estava a ser partilhado e se envolvessem em conversas paralelas, que viriam a contribuir para o ruído e confusão? É possível que a opressão da sociedade e até dos próprios maridos as levasse a reagir de forma excessiva, neste novo ambiente onde a liberdade era possível? Embora estas questões sejam opções interpretativas que exigem alguma especulação, não me parecem completamente impossíveis. Mas, mesmo considerando que a orientação de Paulo não se circunscrevesse às esposas e abrangesse todas as mulheres da igreja, importa olhar de novo para o texto e procurar contextualizá-lo, de modo a permitir a sua melhor compreensão.
Proibição
"Que as mulheres se conservem caladas nas igrejas, porque não lhes é permitido falar". A primeira parte deste versículo contém uma ordem de Paulo, que simplesmente manda as mulheres ficarem caladas na igreja. Por incrível que possa parecer, existem igrejas e grupos religiosos que, ainda hoje, no mundo chamado civilizado, não fazem qualquer exercício de interpretação deste mandamento e aplicam-no literal e diretamente, proibindo as mulheres de expressarem qualquer palavra no contexto da igreja. Outros há, também, que aplicam esta proibição somente aos itens que mais lhes convêm ou que melhor servem os seus pressupostos e necessidades. Por exemplo, elas podem ensinar na Escola Bíblica Dominical, no lar, na classe das crianças, ou até podem dirigir o Louvor. Mas, pregar, pastorear, ensinar homens, isso não, porque "a Bíblia diz que têm que ficar caladas". E há outros ainda que entendem que a ordem foi dada num contexto no qual se justificava e era necessária, mas que a mesma não detém poder de aplicação universal, pelo que já não se aplica hoje. Se olharmos com atenção para o texto e não nos ficarmos pela sua superfície, talvez cheguemos a uma melhor compreensão do mesmo, para então decidir o quê e como aplicar hoje.
A segunda metade da porção do versículo acima transcrita "porque não lhe é permitido falar" pode ajudar a lançar alguma luz para a sua compreensão. O "porque" aponta para a razão do mandamento e é de grande relevância para entendermos o que poderá estar por detrás desta proibição. Em primeiro lugar, importa referir que o primeiro verbo usado por Paulo, traduzido por "se conservem caladas" encontra-se no tempo Presente, no modo Imperativo e na voz Ativa. Não restam, portanto, dúvidas de que se trata de uma ordem. Por outro lado, o segundo verbo utilizado, o qual é traduzido por (não lhes) "é permitido" está no tempo Presente, no modo Indicativo e na voz Média ou Passiva. Ou seja, esta segunda parte, que dá a explicação do porquê da proibição, não se encontra no modo Imperativo. Não se trata de uma ordem, como algumas traduções podem parecer dar a entender. Por outras palavras, muitos leem esta primeira parte do versículo quase como se Paulo estivesse a repetir o mesmo mandamento por duas vezes, ou seja, as mulheres deveriam ficar caladas, porque não podiam falar. Se assim fosse, além de configurar um tipo de redundância quase infantil do tipo "não falem, porque não devem falar", o propósito da segunda parte deixaria de ser o de explicar o porquê de não falarem. A expressão "porque não lhes é permitido falar" não é, portanto, uma repetição da proibição, nem tem a força de mandamento. Em vez disso, encontrando-se no modo indicativo, faz mais sentido considerá-la como uma constatação de factos ou uma declaração de uma circunstância.
Além disso, importa salientar que Paulo não escreve: "Que as mulheres se conservem caladas nas igrejas, porque não lhes é permitido falar nas igrejas". Parece que muitos leem este texto desta forma, mas tal não lhe faz justiça. Embora a primeira parte da frase seja específica da igreja, a segunda não inclui qualquer referência que nos indique continuar a tratar-se do mesmo âmbito ou abrangência. Assim, a segunda parte parece ser de um âmbito mais geral e amplo do que o da igreja. Isto é, provavelmente, seria uma referência à não permissão de expressão que era imposta às mulheres, de uma forma geral, no contexto da própria sociedade daquele tempo. Por aquilo que foi referido acima e muito mais, é do conhecimento geral que a opinião, o contributo e a participação das mulheres era habitualmente desvalorizada, desconsiderada e rejeitada. Este era o contexto sociocultural de há dois mil anos atrás e é natural que esse contexto pesasse nas orientações dadas por Paulo a uma igreja que se inseria nesse mesmo contexto. Ou seja, mais do que uma proibição absoluta e universal, o que encontramos aqui é, muito provavelmente, uma preocupação de Paulo de que a igreja fosse sensível à cultura em que se inseria e procurasse evitar comportamentos culturalmente ofensivos e até potencialmente considerados como ostensivos. Poder-se-á argumentar que, em Corinto, o nível de emancipação feminina já estaria numa esfera em que este tipo de preocupação seria descabido, pelo que não pode ser esta a explicação para a proibição. Todavia, não nos podemos esquecer que no âmbito do casamento a mulher sempre teve um papel de vulnerabilidade, como acima descrito, nas mais variadas culturas, locais e épocas. E se é certo que Corinto era uma localidade que pode ser vista como propícia à emancipação feminina, pela sua natureza cosmopolita, também é certo que essa alegada emancipação traduzia-se frequentemente no proliferar da licenciosidade e imoralidade, quer de homens, quer de mulheres, que redundam em outras variantes de opressão feminina. Aliás, são conhecidos os cultos pagãos, que decorriam naquela cidade, nos quais a imoralidade sexual era a "atração principal".
Assim, parafraseando esta primeira parte do versículo, poderemos considerar que Paulo estaria a dizer algo como: "As mulheres não falem na igreja, porque, de um modo geral, a sociedade não permite que falem." Poderemos questionar se a igreja deveria permitir que uma norma social tão negativa como esta deveria ter peso sobre a liberdade que o Evangelho tinha trazido à mulher. No entanto, não podemos perder de vista que aqui, mesmo esta proibição, não assume um caráter universal e definitivo, ou não faria sentido que as mulheres profetizassem, como referido em I Coríntios 11. Ou seja, nem mesmo para aquele época e contexto, esta proibição teria um peso absoluto. O que está em causa é a cautela e sensibilidade que a igreja deveria ter, ao considerar a cultura em que se encontrava, de tal forma que não fossem criados obstáculos à propagação do Evangelho.
A Lei
Paulo acrescenta: "mas estejam submissas, como também a lei o determina." A referência à submissão remete para as suas orientações relativas ao casamento, como se pode verificar em Efésios 5:22-33, reforçando a ideia de que ele se está a referir às mulheres casadas e não à sua generalidade. No entanto, mesmo em relação a esta sujeição, importa referir que este é somente um dos lados da questão. Devidamente interpretados, os textos que se referem à sujeição dentro do casal não a defendem num sentido unidirecional, mas num contexto de reciprocidade. Aliás, é na sequência de Efésios 5:21 ("Sujeitando-vos uns aos outros, no temor de Deus.") que surgem três contextos em que a mutualidade da sujeição se concretiza, cada um com as suas especificidades, como é o caso do casamento. Faço uma argumentação relativa à sujeição mútua neste artigo: https://vidaemabundancia.blogspot.com/2022/10/o-paradoxo-da-sujeicao-mutua.html
O aspeto mais curioso desta parte final do versículo 34 é a referência final. Paulo diz "como a lei o determina.", o que não deixa de ser intrigante. Normalmente, quando Paulo faz referência à "lei" e usa o artigo definido (grego: ho nomos), está a referir-se à Lei de Deus, conforme expressa no Antigo Testamento, como é o caso de I Coríntios 14:34. É importante referir que, por vezes, ele também usa essa mesma formulação para se referir a outras leis que não a do Antigo Testamento (exemplos: Romanos 2:14,15; 7:21-23; 8:2). Além disso, o próprio termo grego "nomos" não significa somente "lei". A sua amplitude de significados inclui: "uso, costume, lei, a Lei, força ou influência que impele à ação, sistema de pensamento religioso, princípio geral". Ou seja, não fica completamente claro que Paulo se esteja a referir à Lei de Deus, expressa no Antigo Testamento. Aliás, esta noção é reforçada pelo facto de que, na Lei do Antigo Testamento, surpreendentemente não existem referências de que a mulher deveria ficar em silêncio nas assembleias ou reuniões públicas ou, sequer, de que deveria sujeitar-se.
A maior parte dos comentaristas, no entanto, liga a referência que Paulo faz à lei, ao texto de Génesis 3:16, onde se lê: "E à mulher disse: Multiplicarei grandemente a tua dor, e a tua conceição; com dor darás à luz filhos; e o teu desejo será para o teu marido, e ele te dominará." Defendem que a lei que determina que a mulher deve estar em sujeição é o texto de Génesis (o qual, sendo parte do Pentateuco, é considerado como livro da Lei). Desta forma, atribuem ao texto de Paulo um peso equivalente à Lei de Deus, conferindo à sua orientação um carácter sobrenatural, imperativo, absoluto e universal. Mas, este ponto de vista levanta alguns problemas, sendo o principal o facto de que Génesis 3:16 não é uma lei. Além desta dificuldade surge também a questão de Génesis 3:16 não se referir nem a sujeição, nem a conservar o silêncio em qualquer circunstância. Vejamos cada uma destas dificuldades em maior detalhe.
- Em primeiro lugar, importa esclarecer que o que acontece em Génesis 3:16 não é um enunciado legal. Não está a ser proferida nenhuma obrigação, nem nenhuma proibição. Aliás, apesar da Lei já existir antes de ser registada, por tradição oral, somente com Moisés temos o seu estabelecimento e concretização, o que acontece vários milénios depois da Queda e da declaração de Deus na sua sequência (Génesis 3:14-19). O que acontece em Génesis 3:16 não é uma lei de Deus, mas a declaração sobre as consequências que o pecado de Adão e Eva teriam sobre eles próprios, sobre todos os seus descendentes e sobre toda a Criação. O facto de se poder argumentar que a própria Lei também é uma consequência do pecado não resulta na equiparação desta com a declaração das consequências daquele. A própria formulação do texto não tem cariz legal. O texto não fala sobre como as coisas deveriam passar a ser, mas sim como elas passariam a ser. Por outras palavras, as consequências do pecado (não só as descritas em Génesis 3:16, mas todas as demais indicadas ao longo das Escrituras, incluindo a própria morte) são o que resulta do mesmo e, como tal, passíveis de redenção. Por outro lado, a Lei surge para mostrar que o pecado existe e que agride a natureza de Deus, conduzindo-nos até ao Redentor de todas as suas consequências. Portanto, fazer Paulo identificar as consequências do pecado (Génesis 3:16) com a Lei de Deus, que ele tão bem conhecia é, no mínimo, um erro grosseiro de intepretação bíblica, roçando estratégias de manipulação do texto bíblico.
- Em segundo lugar, o conteúdo da declaração de Génesis 3:16, pura e simplesmente, não fala sobre sujeição, nem sobre a mulher permanecer em silêncio em nenhuma circunstância. O texto afirma o seguinte: "Multiplicarei grandemente a tua dor, e a tua conceição; com dor darás à luz filhos; e o teu desejo será para o teu marido, e ele te dominará.". O texto refere a dor e sofrimento que passam a estar presentes na geração de filhos, no desejo ou anseio da mulher que passaria a estar dirigido para o seu marido e no facto de que ele passaria a dominá-la ("mandar, ter domínio, reinar"). Em relação a considerar que este texto fala sobre sujeição, importa referir que essa é uma inferência indevida, que resulta do facto do marido passar a dominar a sua esposa. Entendem alguns que, se ele a domina, é porque ela deve permanecer em sujeição. Esta é uma perversão de pensamento que inquina todo o processo interpretativo. Ao longo de toda a Bíblia, o domínio de uns sobre outros (dentro ou fora do casamento) nunca é visto como algo positivo, espiritual ou desejável. As instruções sobre a sujeição (Novo Testamento) surgem sempre num contexto de mutualidade e nunca admitem a presença de domínio, pela outra parte. Dizer que o marido passaria a dominar a mulher não é sinónimo da sujeição desta. Em vez disso, é uma descrição sumária da opressão, prepotência, violência, abuso e arbitrariedade que, infelizmente, têm caracterizado as relações entre maridos e esposas, ao longo de séculos, na maioria esmagadora das sociedades. E este tipo de cenário nada tem a ver com o conceito de sujeição mútua, voluntária e amorosa que se espera de ambos.
Dos dois pontos acima, conclui-se que não é legítimo afirmar que a "lei" a que Paulo se refere é a Lei de Deus, nem, muito menos, a declaração das consequências da Queda registada em Génesis 3:16. Então, se assim é, a que lei poderá estar ele a referir-se? Seria alguma lei judaica (extrabíblica)? Seria algum uso ou costume daquela época? Seria algum regulamento ou norma social específico de Corinto? Não existe certeza sobre qual a lei a que ele se refere. A única certeza que podemos ter é que ele não se está a referir às Sagradas Escrituras. Atendendo ao que se sabe sobre a forma como a voz feminina era desconsiderada e rejeitada, naqueles tempos e culturas, não é de excluir que essa rejeição fosse registada, de alguma forma, passando a constituir-se como "lei" (entenda-se de acordo com a variedade de nuances acima descritas). Ou seja, aqui, mais uma vez, Paulo está a usar uma referência do contexto sociocultural em que a igreja se insere, para moldar uma forma de estar da igreja, que não fosse ofensiva para a sua cultura. Ora, sendo esta a preocupação de Paulo, compreende-se que: 1) Por um lado, a aplicação desta proibição não pode ser universal, porque as circunstâncias que presidiram à sua escrita já não são as mesmas; 2) E, por outro lado, permanece o princípio universal de que a igreja deve ser sensível à cultura e sociedade em que se insere, adaptando-se em tudo o que lhe for útil e que não contrarie a Palavra de Deus.
Vergonhoso
Qual poderia, então ser a utilidade ou benefício de as mulheres não falarem nas reuniões públicas da igreja? Ao longo de todo o capítulo 14, percebe-se que Paulo quer garantir a edificação da igreja, não só através do exercício dos dons que para tal servissem, quer através da salvaguarda de um ambiente ordeiro e respeitador. Se a participação das mulheres de Corinto contribuía para o ruído e dificultava o crescimento da igreja, então as orientações de Paulo fora úteis para tratar essa dificuldade. Mas, importa referir que também estava presente uma preocupação muito séria para com os que não eram membros da igreja e chegavam às suas reuniões. Quando se deparavam com um ambiente confuso e no qual as mulheres contrariavam a tal "lei" que ele refere, seria muito natural que rejeitassem esse ambiente e não chegassem a ser expostos, de forma adequada, à partilha da Palavra que poderia transformar as suas vidas. Esta preocupação com "os de fora" fica ainda mais evidente, na parte final do versículo seguinte.
O versículo 35 acrescenta: "Se, porém, querem aprender alguma coisa, perguntem em casa ao seu próprio marido". Na sequência do que acima se referiu, relativamente às assimetrias presentes no casamento, é perfeitamente compreensível que Paulo atentasse para a maior vulnerabilidade da mulher (casada) e procurasse uma solução de salvaguarda e resguardo, para as que pretendessem aprender mais sobre a Palavra.
O versículo 35 conclui da seguinte forma: "Porque para a mulher é vergonhoso falar na igreja." Se, três capítulos antes, Paulo tinha contemplado a possibilidade das mulheres profetizarem (partilharem a palavra) em público, tendo inclusivamente dado orientações sobre alguns cuidados culturais que deveriam ter, como pode, agora, considerar "vergonhoso" ("impróprio, sórdido") que elas falem na igreja? Como conciliar a permissão de falar, com a sua proibição e identificação desse ato como vergonhoso? Para procurar entender esta aparente contradição, temos que perceber o porquê de Paulo ter escrito o que escreveu. Que preocupações tinha? Que circunstâncias do seu contexto de escrita ou do contexto dos seus destinatários originais pesaram e condicionaram a sua escrita? Com base no versículo anterior, é legítimo considerar que Paulo teria alguma preocupação com a forma como a igreja se integrava na sociedade onde se encontrava. Por todos os seus demais escritos também podemos concluir que essa integração nunca deveria ir para além do que fosse a vontade de Deus, conforme expressa na Sua Palavra. Tendo em consideração estas preocupações, vejamos um pouco mais sobre o contexto da cidade de Corinto.
Interpretação
A cidade de Corinto era um centro de comércio e passagem de muitas pessoas. Desse carácter cosmopolita surgira rapidamente uma sociedade com regras de moralidade e ética bastante "soltas", o que tinha influência na cosmovisão de todos os que lá viviam e dos que se chegavam à igreja. Alguns estudiosos indicam que o termo "Coríntio" era usado, de forma pejorativa, para se referirem a alguém com comportamentos libertinos, promíscuos e imorais. Do ponto de vista religioso, Corinto era caracterizada por dois grandes cultos: Dionísio (Baco, para os romanos) e Afrodite (Vénus, para os romanos). Tanto um como o outro incluíam atos e "celebrações" de cariz sexual. Particularmente no culto de Afrodite, mas também no de Baco, existiam "sacerdotisas sagradas" que lideravam as ditas celebrações, as quais resultavam em variados atos de imoralidade sexual. Pode dizer-se que se tratavam, no fundo, de locais de prostituição, disfarçados de espiritualidade ou religiosidade. Como é evidente, todas estas práticas eram condenáveis e vergonhosas, do ponto de vista da santidade e moralidade cristãs. É perfeitamente natural que Paulo quisesse salvaguardar a igreja e as próprias mulheres de serem erradamente identificadas ou confundidas com mais um tipo de "sacerdotisas" de cariz imoral, o que seria de grande prejuízo para o testemunho do Evangelho. É, portanto, provável que a sua referência à vergonha de uma mulher falar na igreja fosse uma advertência para que procurassem um nível de comportamento claramente distinto do praticado nos referidos cultos pagãos.
Por um lado, vemos novamente aqui uma preocupação de Paulo indexada à cultura e contexto social em que a igreja se inseria. Desta feita, pela negativa. Ou seja, deveriam adotar práticas que os distinguissem e distanciassem dos elementos imorais, negativos e contrários aos valores divinos da sociedade onde estavam. Mas, ainda assim, não deixariam de ter que ser sensíveis aos elementos que os circundavam. Por outro lado, vemos também aqui a mesma linha de raciocínio que ele usa quando fala sobre as carnes sacrificadas aos ídolos. Em I Coríntios 10:23-33 e em outros lugares, Paulo mostra que não haveria qualquer problema em comer carnes que haviam sido sacrificadas aos ídolos. No entanto, para não ofender os irmãos mais fracos, nem confundir a consciência dos que ainda não eram crentes, Paulo recomenda que não se coma essa carne, no caso desse ato poder ofender ou escandalizar outros. Esta mesma lógica parece estar presente no caso das mulheres falarem na igreja, em Corinto. Podem fazê-lo, porque profetizavam, mas não o deveriam fazer, por causa da possibilidade de escândalo.
Compreender que elementos do contexto sociocultural, em que se inseria a igreja de Corinto, foram determinantes para esta orientação de Paulo, ajuda-nos não só a harmonizar a totalidade dos seus textos sobre este tema, como permite extrair princípios, esses sim, eternos e universalmente aplicáveis. Por um lado, percebemos que esta orientação foi dirigida àquela igreja, naquele contexto, naquela cultura e época. As circunstâncias em que aquela igreja viveu contribuíram para uma situação que necessitava daquela instrução específica. Esta percepção é fundamental para chegarmos à conclusão de que a letra do escrito de Paulo, naquela circunstância, não tem, necessariamente, uma aplicação literal, direta e universal a todas as igrejas, em todas as culturas e épocas. As circunstâncias em que as igrejas de hoje vivem não são aquelas e, como tal, a instrução não se lhes aplica. Por outro lado, importa também perceber que o texto não pode ser simplesmente descartado, por não se aplicar literalmente. É necessário chegar aos seus porquês e procurar identificar os tais valores e pressupostos que presidiram à sua escrita, de modo a perceber o que permanece aplicável hoje, como sejam, neste caso, a necessidade de ordem, a sensibilidade cultural e a valorização da edificação mútua.
O trabalho de investigação e estudo do texto deve conduzir à descoberta do que pode e deve ser aplicado, hoje e sempre, em todas as igrejas. Parece ter ficado evidente que Paulo tem claras preocupações com a forma como a igreja se integra e, ao mesmo tempo, se distingue da sociedade e cultura com que convive. Estes princípios exigem uma sensibilidade e atenção, por parte da igreja, no sentido de compreender, a cada momento, os sinais que estão à sua volta. A igreja não pode fechar os olhos e os ouvidos à sua cultura. Não pode sequer pensar que pode permanecer imune ao seu meio. Se é certo que existem forças e influências da sociedade, às quais ela deve resistir, também é certo que se lhe exige a flexibilidade, dinâmica e articulação necessárias, para se adaptar ao que não contraria a Palavra de Deus. Será que esta capacidade vai redundar sempre em lucro e benefício direto e imediato, para a igreja? Não, nem sempre. Por vezes, o compromisso em que a igreja entra leva-a a abdicar de direitos e possibilidades. Então, porquê fazê-lo? Pelos valores mais altos e ulteriores do Evangelho. Porque, em algumas circunstâncias, de forma a não criar mais barreiras ao conhecimento de Deus, a igreja está disposta até a abrir mão de direitos e prerrogativas suas. Veja-se, por exemplo, a forma como Paulo se dispunha a "fazer-se de tudo, para com todos, para chegar a salvar alguns" (I Coríntios 9:22) É com este equilíbrio dinâmico de adaptação e distinção da sociedade e cultura que a igreja se posiciona como elemento transformador e redentor dessa mesma cultura e sociedade.
Conclusão
Se é certo que, hoje, ainda estamos distantes de uma sociedade em que homens e mulheres são vistos, de facto como iguais e equiparados, não é menos certo que as desigualdades já não são as do primeiro século. Logo, a forma da igreja lidar com homens e mulheres também já não pode ser a do primeiro século. Lembremo-nos que a mensagem do Evangelho é, acima de tudo, de Redenção. Redenção dos efeitos e consequências do pecado. A forma como a sociedade do primeiro século lidava com homens e mulheres estava fortemente contaminada e condicionada pelo pecado. Se é certo que o mesmo pode ser dito em relação à nossa sociedade atual, não podemos perder de vista que o Evangelho também redime essa contaminação e condicionamento. O trabalho de interpretação bíblica, através da destrinça entre o que é cultural e o que é eterno, é absolutamente fulcral para a continuação da redenção iniciada e desenvolvida pelo Evangelho. Assiste, assim, a cada a igreja a tarefa, não de atualizar a Bíblia, mas sim a sua interpretação, com os devidos cuidados de contextualização. Só assim a posterior aplicação dos princípios e valores eternos poderá ser efetuada de forma adequada.
Em resumo, a letra do que Paulo escreveu a Corinto, sobre as mulheres permanecerem em silêncio, na igreja, não resulta num aplicação atual. Ou seja, as mulheres não estão biblicamente proibidas de falar, nem de dar o seu contributo, no contexto da igreja, como também não o devem estar em qualquer outro contexto. O espírito do que ele escreveu, no que concerne ao respeito e consideração pelo contexto em que a igreja se insere, de modo a não trazer prejuízo para o Evangelho, esse sim, deve ser aplicado em relação à própria cultura em que cada comunidade cristã se encontra, sem que os limites da Palavra de Deus sejam ultrapassados. Que as nossas igrejas aprendam a ser agentes transformadores do meio em que se encontram, com o auxílio da Palavra de Deus e capacitadas pela sua Sabedoria e Graça.
Rúben, continue a evangelizar.
ResponderEliminarÉ muito importante ter mais e mais pessoas nessa obra.
Deus conduz Seu povo.
Carlos Bitencourt
Obrigado!
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