"Não há pastoras, no Novo Testamento!", vociferam os antagonistas da consagração de mulheres ao ministério pastoral. De facto, no sentido em que o termo "pastora" (grego poimen, mas no feminino) não surge no Novo Testamento, têm razão. Ou seja, a palavra "pastor" nunca surge, no feminino, no Novo Testamento. Quem usa esta ausência do termo, como bandeira da sua militância contra o pastorado feminino, usa-a meramente como um símbolo, uma evidência e não como fundamentação teológica para a sua posição. É, no fundo, uma declaração simplista, populista e até ridicularizante que, não servindo como fundamento da causa, parece, de algum modo, resumi-la. A declaração de que não existem pastoras no Novo Testamento é de natureza superficial, procura defletir a discussão do seu real cerne e menospreza a investigação honesta do registo bíblico. Durante muito tempo, considerei que o mais razoável a fazer com semelhante "argumentação" era simplesmente descartá-la, por não se tratar de uma abordagem realmente séria ao assunto. Todavia, tenho percebido que a estratégia de banalização do debate, alimentada por expressões como esta e outras do mesmo nível (e inferior), tem que ser igualmente combatida. Para este efeito, por vezes, será preciso começar por apresentar argumentos contrários, que se encontram na mesma linha de raciocínio, para, só depois, se passar a uma argumentação realmente útil e relevante. Este texto pretende contribuir para essa discussão.
Pastoras e Pastores
Em primeiro lugar, importa notar que a ausência de "pastoras", no Novo Testamento, é acompanhada, a par e passo, pela ausência de "pastores". Não me refiro à palavra grega só por si, mas à sua aplicação a homens. Nenhum homem, no Novo Testamento, é identificado como sendo "pastor". Este elemento, por si só, deveria ser suficiente, para silenciar a primeira frase deste texto. No entanto, como a tal frase não é proferida como contributo sério para o debate, os seus emissores fazem orelhas moucas a esta linha de contra-argumentação.
Na realidade, a palavra grega "poimen", que significa "pastor" (masculino, singular), nunca surge, no Novo Testamento, aplicada à liderança de qualquer igreja, nem a nenhum líder em particular. No Novo Testamento, as únicas vezes que este termo surge, no masculino singular, são em referência ao Pastor Jesus Cristo e nunca em relação a um homem. Esta verificação não pode ser efetuada somente com recurso aos textos traduzidos, na medida em que algumas versões introduzem a palavra "pastores" onde o original não contém o termo "poimen", sendo sempre necessário o recurso ao original grego.
Por exemplo, a facilidade com que identificamos Timóteo como o "pastor da igreja de Éfeso" ou Tiago como o "pastor da igreja de Jerusalém", contrasta de forma clara com a absoluta ausência de textos que se refiram a qualquer um deles como "pastor" e ainda mais como sendo "o" pastor desta ou daquela igreja. Acredito que, tanto Timóteo, como Tiago, terão sido, de facto, membros do grupo de liderança ou equipa pastoral das igrejas onde serviam. Normalmente, pelo uso abundante que a palavra "ancião" (grego presbuteros) tem no Novo Testamento, não é de excluir a hipótese de terem sido identificados como tal. Também não é impossível que possam ter sido chamados de "pastores" ou até mesmo de "bispos" (grego episcopos). Não contesto a possibilidade do termo lhes ter sido aplicado. Contesto a ligeireza com que declara a ausência da "pastoras" no Novo Testamento, perante a absoluta ausência da sua contraparte masculina. Em nenhum lugar do Novo Testamento encontramos referência ao "pastor Timóteo", ao "pastor Tiago", ao "pastor" A, B ou C, nem ao pastor que está na igreja X, Y ou Z.
Gramática
Em segundo lugar, é preciso referir que o termo "pastor" surge uma única vez, no Novo Testamento, aplicado à liderança da igreja, em Efésios 4:11: "E ele mesmo deu uns para apóstolos, e outros para profetas, e outros para evangelistas, e outros para pastores e doutores". Aqui o termo surge no masculino, plural. Como é sabido e facilmente se compreende, pelo que acontece na maior parte dos idiomas, a utilização do termo no plural, mesmo sendo no masculino, inclui a possibilidade (do ponto de vista gramatical) de estarem incluídos elementos femininos. Ou seja, o facto do termo que surge em Efésios 4:11 se encontrar no masculino, não coloca de parte a possibilidade de existirem "pastoras" nesse grupo.
Esta linha de argumentação estritamente gramatical não serve de base para justificar a existência de pastoras. Em vez disso, serve como evidência de que a sua possibilidade não está excluída, pelo menos, não do ponto vista dos termos usados pelo Novo Testamento, como parece querer demonstrar o ponto de vista da contestação inicial.
Inexistência?
Em terceiro lugar, a ausência de referências a "pastoras" não implica, necessariamente, a sua inexistência. Numa cultura e contexto de profunda depreciação da mulher e do seu potencial e possibilidades, é perfeitamente compreensível que, mesmo que algumas mulheres surgissem com dons e tarefas pastorais, as mesmas não fossem formalmente identificadas como tal. Aliás, como referido acima, se nem os homens surgem identificados no Novo Testamento com a designação de "pastor", é perfeitamente expectável que tal também não ocorra em relação às mulheres. O contrário, sim, seria de estranhar. Por outras palavras, da mesma forma como a ausência de homens identificados como "pastores" não resulta, necessariamente, nas sua inexistência, o mesmo deve ser aceite em relação às mulheres.
Impossibilidade?
Em quarto lugar, a mera ausência de referência, no Novo Testamento, só por si, não é argumento suficiente para considerar a impossibilidade da sua existência atual. Existem inúmero elementos, cuja referência não consta no Novo Testamento e não é por isso que as igrejas atuais deixam de fazer uso dos mesmos. Por exemplo, o Novo Testamento não refere a utilização de instrumentos musicais, no culto cristão e a maior parte das igrejas atuais, identificadas como cristãs, faz uso de vários instrumentos musicais. Outro exemplo é a existência e utilização de templos cristãos, em relação aos quais o Novo Testamento é omisso (uma vez que não existiam) e a maioria esmagadora das igrejas atuais usam instalações especificamente dedicadas ao culto e às atividades da igreja. Ainda outro exemplo é a ausência de mandamentos dirigidos às congregações para que a Palavra de Deus fosse lida. Como é natural, pela ausência de cópias individuais das Escrituras, seria impensável Paulo ordenar a uma igreja que as lesse. O mandamento é para que sejam ouvidas. Ora, como é natural, hoje que temos acesso a cópias individuais da Palavra de Deus, não nos limitamos a ouvi-la. E, para além destes três exemplos, muitos mais elementos poderiam ser citados, que não constam no Novo Testamento, enquanto elementos da vida da igreja cristã, cuja prática atual está completamente normalizada, como sejam: celebração do nascimento de Jesus, celebração de casamentos, apresentação de recém-nascidos, existência de Estatutos e Regulamentos Internos, Escola Bíblica Dominical, existência de Seminários, organismos de cooperação de igrejas, organizações paraeclesiásticas, envelopes de dízimos, celebração de dias especiais, rol de membros, conta bancária, concílios examinadores, gazofilácio, hinários, etc.
Título ou Função?
Em quinto lugar, torna-se necessário clarificar que deve fazer-se uma distinção entre o título de "pastor" ou "pastora" e a função pastoral ou o ministério pastoral. Tal como se verifica em relação aos homens, em que a inexistência do termo "pastor", enquanto título identificador, não resulta na inexistência de homens que desenvolviam ministério de pastoreio, o mesmo pode ser dito em relação às mulheres. Ou seja, não é porque não surge uma mulher a quem é atribuído o título de "pastora" que tal significa que as mulheres não exerceriam funções e tarefas de ordem pastoral e as mesmas não tenham ficado registadas no Novo Testamento. Pela ausência de aplicação de títulos aos diversos intervenientes, na igreja primitiva, em todo o Novo Testamento, percebe-se que o dom é mais importante do que o título, a função é mais importante do que o estatuto, o ministério é mais importante do que o reconhecimento oficial.
A grande questão não é se alguma mulher no Novo Testamento foi chamada de "pastora", mas se as mulheres desempenhavam ou não funções pastorais e se eram reconhecidas como tal, pela igreja primitiva. Para responder a esta questão, é necessário, em primeiro lugar, perceber em que contexto se desenrola a intervenção das mulheres do Novo Testamento.
Contexto
"No primeiro século, a mulher enfrentava um contexto de grande desigualdade e limitação em praticamente todas as áreas da sociedade. As influências culturais judaica, greco-romana e oriental moldavam o seu papel, muitas vezes reduzindo a sua liberdade e valor social. Aqui está um panorama geral da situação feminina nesse período:
Contexto Social e Familiar.
A mulher era vista principalmente como esposa e mãe, com a sua identidade e estatuto definidos pelo homem (pai ou marido). O casamento era frequentemente combinado e o divórcio era mais acessível para os homens do que para as mulheres. A virgindade feminina antes do casamento era considerada essencial para a honra da família, enquanto os homens tinham mais liberdade sexual. Em muitas culturas, a mulher era vista como propriedade do marido, sem autonomia legal.
Contexto Religioso
No judaísmo, a mulher tinha um papel secundário no culto. Não podia ser rabina, não lia a Torá publicamente e era separada dos homens, nas sinagogas. A oração diária de um judeu incluía a frase: "Obrigado, Deus, por não me ter feito mulher." No mundo greco-romano, as mulheres podiam participar em cultos religiosos, especialmente os dedicados a deusas como Ártemis e Ísis, mas raramente tinham autoridade sacerdotal. No cristianismo primitivo, no entanto, houve maior inclusão das mulheres. Jesus dialogou com mulheres, algo incomum para os mestres judeus e várias delas desempenharam papéis importantes (Maria Madalena, Febe, Priscila).
Contexto Político
As mulheres geralmente não tinham direitos políticos. Não podiam votar nem exercer cargos públicos, com algumas exceções em famílias nobres e imperiais. No Império Romano, algumas mulheres da elite tinham influência indireta, mas sem participação formal no governo.
Contexto Económico
O trabalho da mulher era, na maioria dos casos, doméstico e não remunerado. Algumas mulheres pobres trabalhavam como tecelãs, parteiras, vendedoras e servas. As viúvas muitas vezes enfrentavam dificuldades financeiras extremas, o que explica a ênfase bíblica no cuidado para com elas.
Contexto Educacional
A educação feminina era limitada. As meninas aprendiam tarefas domésticas, enquanto os meninos recebiam formação formal em filosofia, leis e retórica. No mundo judaico, as mulheres não eram incentivadas a estudar a Torá, sendo essa uma atividade masculina. No Império Romano, algumas mulheres da elite receberam educação, como foi o caso de Hipátia de Alexandria.
Conclusão
O primeiro século foi uma época de forte desigualdade de género, onde a mulher era, na maioria dos casos, socialmente inferior ao homem. Contudo, o cristianismo primitivo trouxe mudanças significativas, promovendo maior dignidade e participação feminina, algo revolucionário para a época."[1]
É neste contexto que o Novo Testamento acontece. É neste cenário de contrariedades, limitações e obstáculos para as mulheres, que o Evangelho traz redenção e restauração do valor e lugar da mulher. Num ambiente destes, não é surpreendente não existirem referências a "pastoras". O que é surpreendente e verdadeiramente revolucionário é a quantidade de "afloramentos" da participação feminina, presentes nas páginas do Novo Testamento. E, em cada um desses, vemos nada mais nada menos do que o exercício de funções e responsabilidades pastorais. Vejamos alguns desses elementos embrionários do pastoreio feminino.
Ana
Logo no início do Novo Testamento, ainda antes da existência da igreja, encontramos algumas referências a mulheres e à forma como serviram a Deus, em funções e tarefas que demonstram o reconhecimento de papéis de liderança e de cariz ministerial. Em Lucas 2:36-38, encontramos Ana, uma profetisa, que pregava (a dimensão do ensino é indissociável da pregação) "a todos os que esperavam a redenção em Jerusalém". Este é um exemplo de uma mulher que, na linha de, pelo menos, outras quatro mulheres do Antigo Testamento (Miriam - Êxodo 15:20; Débora – Juízes 4:4; Hulda – 2 Reis 22:14-20 e 2 Crônicas 34:22-28 e a esposa de Isaías – Isaías 8:3), era ouvida enquanto pregadora. Importa referir, por exemplo, que, num contexto em que Miriam era profetisa, reconhecida como tal pelo seu povo, os descritivos em relação aos critérios para os profetas, foram todos registados no masculino, não constituindo tal facto impedimento para que uma mulher fosse profetisa (Deuteronómio 13:1-5, 18:18-22). Aliás, seria absolutamente incompreensível se o Evangelho, com todo o seu poder redentor e restaurador, viesse impor restrições e limitações ao ministério feminino que nunca encontramos, anteriormente, em todo o Antigo Testamento. O que faz sentido é que o Evangelho venha validar, aprofundar e alargar o âmbito de ministério disponível e possível para as mulheres, no sentido da parceira Edénica de liderança (Génesis 1:27-28).
Samaritana
Em João 4, lemos sobre um encontro de Jesus, com uma mulher samaritana, junto ao poço de Jacó. Depois deste encontro profundamente transformador, aquela mulher é impelida a ir aos da sua terra e pregar-lhes sobre o Messias. Pelo registo de João, a pregação foi curta e quase só em forma de pergunta ou convite. Mas não deixa de ser significativo que Jesus, propositadamente, se encontre com uma mulher, sabendo que ela seria a portadora da mensagem, para os demais residentes daquele lugar. Aos nossos olhos, esta escolha pode parecer banal ou meramente casual, mas o texto dá indicações de que este episódio foi tudo menos casual. Não só João 4:4 indica que "lhe era necessário passar por Samaria", apesar de ficar fora do caminho mais habitual e mais esperado, como em João 4:27, lemos sobre a admiração dos discípulos, pelo facto de Jesus estar a falar com aquela mulher. Nada disto foi casual. Pleno de intencionalidade e propósito, Jesus operou na vida daquela mulher e transformou-a numa proclamadora da Sua Palavra.
Ressurreição
Não nos podemos esquecer que os primeiros pregadores de uma das mensagens mais centrais do Evangelho - a ressurreição de Jesus - foram mulheres. E, mais uma vez, não há aqui acaso. Há propósito, intencionalidade, desígnio. Em Mateus 28:8-10, Marcos 16:7-8, Lucas 24:9-11 e João 20:17-18 lemos sobre a comissão divina colocada sobre aquelas mulheres, de irem ter com os demais discípulos e anunciar-lhes a mensagem mais revolucionária que alguma vez ouviriam em toda a sua a vida. Não é por acaso que mulheres são escolhidas para esta importante tarefa. Não é por acaso, também, que a mensagem mais difícil de acreditar foi confiada, em primeiro lugar, àquelas cuja voz não era considerada e cuja credibilidade nada significava. Podemos perceber essa desconsideração para com a sua mensagem, no registo de Lucas, quando se refere que "as suas palavras lhes pareciam como desvario, e não as creram". Esta descrença não resultava somente do conteúdo da mensagem, mas também de quem eram as suas portadoras - mulheres. Este é um dos momentos em que o Evangelho eleva e equipara o estatuto, a posição e o papel da mulher, ao do homem, de forma indelével.
Casas
Já depois do surgimento da igreja, quando se refere que uma determinada igreja se reunia em casa de alguém, é razoável assumir que, mesmo que essa pessoa não fosse pastor/a ou ancião/ã, com toda a certeza seria, pelo menos parte do grupo de pessoas responsável pela comunidade. Ou seja, no mínimo, essa pessoa seria membro de uma equipa ou grupo de pastoreio, atendendo ao facto que o pastoreio, na igreja primitiva, parece ter sido sempre plural. Neste sentido, encontramos Lídia (Atos 16:14-15, 40), Priscila e Áquila (Romanos 16:3-5 - Priscila é referida em primeiro lugar, denotando provável liderança; I Coríntios 16:19), Ninfa (Colossenses 4:15) e Maria, mãe de João Marcos (Atos 12:12), como prováveis líderes das congregações que se reuniam nas suas casas. Receber a igreja, em sua casa, não era somente sinal de que tinham uma casa grande e eram hospitaleiras. Era sinal de compromisso, de dedicação, de serviço, de ministério e de liderança.
Senhora eleita
O apóstolo João dirige a sua segunda carta, a uma "senhora eleita" (II João 1:1-2). Apesar de todos os esforços em tentar diluir esta expressão a uma referência, mais ou menos poética ou metafórica, que João usaria para se referir à igreja, a explicação mais natural e simples é que João escreve esta carta, efetivamente a uma mulher. O facto de referir-se aos seus "filhos" como sendo os membros da igreja, não deve ser o suficiente para se considerar que a sua expressão não é em relação a uma "senhora", uma vez que o próprio João recorre a essa figura de identificar os crentes de "filhos", por diversas vezes (I João 2:1,12,18,28; 3:7,18; 4:4; 5:21). Ora, se esta "senhora" era efetivamente uma pessoa e os seus "filhos", os crentes que congregavam, por exemplo, em sua casa, então, provavelmente estamos perante uma líder pastoral da igreja. O facto de João não identificar esta mulher, nem a sua irmã (II João 1:13) é facilmente compreendido, tendo em consideração as preocupações de segurança e privacidade que João teria, numa época de muita perseguição para os crentes.
Priscila
Em Atos 18:24-26, lemos sobre Priscila e Áquila que "levaram consigo" Apolo, para lhe explicarem, mais em detalhe, sobre o "caminho de Deus". Neste texto, não só encontramos uma mulher que, juntamente com o seu marido, exerce o ministério de ensino, neste caso a Apolo, como também o destaque, tudo menos casual, que Paulo lhe dá, ao referir-se a ela em primeiro lugar. Numa época em que as mulheres eram desconsideradas e habitualmente o nome do marido era mencionado em primeiro lugar, não é sem intencionalidade que, nas seis referências bíblicas a este casal, quatro delas são feitas com Priscila em primeiro lugar (Atos 18:18, 26, Romanos 16:3 e II Timóteo 4:19). Este facto denota uma clara preeminência de Priscila, quer no domínio da liderança, quer nas demais áreas ministeriais. Sabendo que, pelo menos em alguns momentos, a igreja reunia-se em casa de Priscila e Áquila, a liderança pastoral de Priscila tem que ser considerada com um grau elevadíssimo de probabilidade.
Ao argumento de que Priscila e Áquila levaram Apolo para a sua casa, pelo que o ensino por parte da mulher só foi possível por se tratar de algo efetuado na sua residência e em presença do seu marido, importa salientar os seguintes pontos:
- Apolo não se encontrava a pregar na igreja e foi levado por Priscila e Áquila, para sua casa. Apolo estava a pregar na sinagoga e, por isso, não seria um ambiente propício ao ensino e esclarecimentos que Priscila e Áquila precisavam ministrar.
- Em bom rigor, o texto não diz que levaram Apolo "para a sua casa". Só sabemos que o levaram, para fora do contexto da sinagoga.
- Se a conversa aconteceu no lar de Priscila e Áquila, então aconteceu num ambiente familiar, o que tem tudo a ver com o ambiente da vida da igreja, já que era nesse contexto que a vida da igreja acontecia.
- Caso o tenham levado para sua casa, nada invalida que essa conversa tivesse ocorrido no contexto de uma reunião com outros irmãos da igreja. Afinal, a igreja reunia-se na sua casa e como, em vários contextos, as reuniões aconteciam todos os dias, essa é uma hipótese - impossível de confirmar, mas ainda assim um hipótese.
Quanto ao argumento de que Priscila só ensinou um homem adulto, porque estava em presença do marido, importa referir o seguinte:
- A circunstância de que o marido está presente é exatamente isso: circunstancial.
- O texto não dá qualquer elemento para supor que, se Priscila não fosse casada, não poderia ter ministrado o ensino a Apolo.
- O texto também não contém qualquer indicação que foi a presença do marido que habilitou Priscila a ensinar um outro homem adulto.
- Pelas referências de destaque de Priscila efetuadas por Paulo e Lucas, a realidade parece mais o oposto deste argumento. Ou seja, Priscila não dependia da liderança de Áquila, para ministrar. Ele sim, ministrava perante a liderança de Priscila.
Eunice
Nos textos de II Timóteo 1:5; 3:14-15, encontramos referência a Loide e Eunice - avó e mãe de Timóteo - que o ensinaram nas "sagradas letras". Atos 16:1 parece dar a entender que o pai de Timóteo, que era grego, não seria praticante ou devoto nem do judaísmo, nem do cristianismo. Caso este fosse o cenário, estamos perante uma mulher crente que ensinou o seu filho sobre as Escrituras. Quando à alegação de que aqui só vemos que as mulheres podem ensinar crianças e no ambiente do lar, importa referir:
- Quanto ao ambiente do lar, conforme referido acima, era exatamente nesse ambiente que a vida da igreja primitiva acontecia, pelo que não é razoável considerar ambos esses ambientes como sendo estanques e mutuamente exclusivos.
- No caso de Eunice, vemos uma mulher crente que, apesar do seu marido não o ser, assume a liderança do ensino do seu filho.
- O ensino que Eunice ministrou a Timóteo não se circunscreveu ao que seria esperado de uma mulher limitada às tarefas e lidas do lar. Em vez disso, extravasou claramente as expectativas masculinas da época e ensinou-lhe nada menos do que as Escrituras.
- Não há elementos que permitam determinar até que idade Eunice ensinou Timóteo, o que levanta algumas dificuldades à posição legalista de permitir que as mulheres só ensinem "crianças". Afinal as mulheres podem ensinar "crianças", mas até que idade?
- Este testemunho de Eunice é mais uma evidência de que, fruto das características maternais e não só, as mulheres estão plenamente equipadas para as tarefas de ensino e cuidado, provavelmente até em maior dimensão do que os homens.
Presbíteras
Surge uma vez, no original do Novo Testamento, o termo grego "presbyteras" (I Timóteo 5:2). Em Tito 2:3-5, Paulo usa o termo "presbytidas", o qual é próximo de "presbyteras". Ambos os termos referem-se a mulheres de mais idade ou maturidade. O termo "presbyteros", na maior parte das vezes, é traduzido por "ancião" e, quase sempre, refere-se a alguém responsável pela liderança da igreja. Em algumas versões e traduções, o termo nem sempre é traduzido, sendo por vezes simplesmente transliterado. A opção de não traduzir um vocábulo não decorre de elementos textuais ou contextuais, mas sim, acima de tudo, de pressupostos e posturas teológicas e tradicionais de quem efetua a tradução. Não existem razões objetivas e puramente gramaticais, para decidir sobre a não tradução de um termo e optar pela sua transliteração, pelo menos, sempre que a tradução é possível. Infelizmente, frequentemente, essas opções acabam por enviesar a própria percepção e interpretação do texto, na língua traduzida. A opção de não traduzir este termo em concreto não se verifica com a sua variante feminina, uma vez que é traduzido por "mulher idosa", "mulher de idade", "idosa" ou outra variante. Se é certo que o termo "presbytidas" parece ser mais vocacionado para identificar, de facto, mulheres que eram simplesmente mais idosas, o mesmo não é necessariamente verdade em relação ao termo "presbyteras". Este termo, para além de significar uma mulher de mais idade ou maturidade, pode ser perfeitamente ser traduzido por "anciã". Este termo, deixaria mais claro que, para além de se tratarem de mulheres mais velhas, poderiam ter também funções de liderança na igreja local. Naturalmente, esta liderança era condicionada pelo contexto sociocultural daquela época, razão pela qual, em Tito 2:3-5, vemos as suas atribuições de liderança e ensino vocacionadas para as mulheres mais novas. Mas, se atentarmos para o paralelo entre as características que estas "presbytidas" deveriam ter (em Tito 2:3-5), com as descritas para os "presbíteros" (em 1 Timóteo 3:1-7 e Tito 1:5-9), vamos perceber vários pontos de contacto que, apesar do momento embrionário desta nova dinâmica de liderança, constituem claros indícios de que elas também eram reconhecidas como líderes.
Júnia
Em Romanos 16:7, Paulo refere-se a uma parente sua, chamada Júnia, que se tinha destacado "entre os apóstolos". Não fica claro se Paulo a identificava como pertencendo ao grupo dos apóstolos, no qual se tinha destacado, ou se o grupo dos apóstolos a teria em grande consideração, mesmo não pertencendo ela a esse grupo. Se Paulo a inclui no grupo dos apóstolos, provavelmente, fá-lo no sentido do significado da palavra, ou seja, como "enviada". Este sentido compreende-se, na medida em que Paulo também se considerava a si e a vários outros como tendo sido "enviados" para pregar o Evangelho. Por outro lado, por considerar-se como que um "abortivo" (I Coríntios 15:8) e perante os critérios para o apostolado (Atos 1:21-22), não parece razoável que Paulo considerasse Júnia, ou qualquer um dos outros a quem se refere como "apóstolos", com a mesma "autoridade apostólica" (Efésios 2:20). De qualquer forma, Paulo considera-a como uma colaboradora inestimável, a qual recebia o reconhecimento e destaque, entre o grupo dos apóstolos (quer fosse o grupo de 12 e Paulo, quer fosse o grupo mais alargado de "enviados"). Ora, não se recebe reconhecimento desta natureza sem se desenvolver um ministério de partilha do Evangelho, com elevada dedicação. E, como é natural, nesse ministério estão incluídas, com toda a certeza, diversas tarefas de índole pastoral, como sejam a pregação, o ensino, a admoestação, a liderança, o cuidado, etc.
Filhas de Filipe
Em Atos 21:8-9, lemos sobre quatro filhas de Filipe que profetizavam. Conforme se compreende, não só pelos exemplos proféticos do Antigo Testamento, como pelas referências neotestamentárias relativas ao dom da profecia e a esse importante ministério, a profecia não se limitava ao anúncio de eventos futuros. Em vez disso, a maior parte da mensagem do profeta era direta e contextualizada ao povo da sua época e cultura. Se é certo que, por vezes, o profeta falava sobre eventos que não iriam acontecer no seu tempo de vida e descrevia visões e predições que lhe tinham sido reveladas, muitas vezes sem linguagem completamente clara, na maior parte das vezes, a sua profecia era a pura e simples pregação e proclamação da Palavra de Deus. Este facto é fundamental, para percebermos que, mesmo no Novo Testamento, a profecia encontra a sua concretização prática na pregação, com todos os elementos de cuidado pastoral que lhe estão associados: ensino, admoestação, orientação, repreensão, confrontação, instrução, etc. Mais do que uma atividade quase como que involuntária, em que o Espírito tomaria de assalto o profeta e este entraria num estado de transe, para transmitir algo fora do seu conhecimento, a profecia é um exercício racional de vontade e inteligibilidade. Aliás, nesta mesma linha de raciocínio, Paulo deixa claro que o "espírito do profeta está sujeito ao profeta" (I Coríntios 14:32). As filhas de Filipe são um exemplo de mulheres que pregavam a Palavra de Deus e, quer o fizessem no seio da igreja, quer o fizessem para o exterior da mesma, as funções pastorais de ensino, proclamação da Palavra, chamada ao arrependimento, exortação e outras relacionadas estavam inegavelmente presentes.
Mulheres de Corinto
Na mesma linha do ponto anterior, encontramos as mulheres de Corinto que profetizavam e oravam em público, concretamente no contexto da igreja local (I Coríntios 11:5). Por esta evidência, percebe-se que a limitação que Paulo emite em I Coríntios 14:34-35, de que as mulheres ficassem em silêncio e, caso quisessem aprender, questionassem os maridos, em casa, não era de aplicação universal, nem mesmo para a época e contexto daquela igreja. Com a limitação de I Coríntios 14:34-35, Paulo está a combater o ruído, a desordem e a confusão que algumas mulheres deveriam estar a causar, conforme se percebe pelos versículos anteriores. Não estava em causa o exercício de dons espirituais, para edificação da igreja, como é o caso da profecia, entendida como partilha da Palavra (conforme acima exposto). O facto de Paulo não mandar as mulheres que profetizavam e oravam ficarem caladas, mostra uma permissão implícita dessas práticas. Entendida nas suas várias dinâmicas e abrangências, não há como contornar o facto de que Paulo está admitir que as mulheres ensinassem, através da pregação da Palavra, tanto homens como mulheres, em público, no contexto da igreja, tal como acontece no exercício do ministério pastoral. Será que seriam pastoras? É possível que não fossem identificadas como tal. Mas não restam dúvidas de que exerciam funções de natureza pastoral.
Febe
Em Romanos 16:1-2, Paulo identifica Febe não só como uma "diaconisa" (traduzido, na maior parte das versões, como "serva"), como utiliza um termo singular para se referir a ela: "prostatis". Enquanto diaconisa, importa lembrar que, pelo menos, algumas igrejas reconheciam os diáconos como fazendo parte da liderança da igreja local (Filipenses 1:1). Além disso, a lista de requisitos para o exercício desta função (1 Timóteo 3:12-13), tendo muitos pontos em comum com os requisitos para o exercício do bispado ("episcopos"), permite perceber que se pressupunha uma considerável dimensão de liderança por parte do mesmo. O facto de Paulo referir-se a Febe como "diaconisa" (grego "diakonon") demonstra que a descrição que ele envia a Timóteo sobre as características que um "diácono" (masculino) deveria ter, não pode servir como base para excluir a possibilidade de uma mulher ser diaconisa. Assim sendo, o mesmo raciocínio pode e deve ser seguido em relação à descrição, também remetida a Timóteo, sobre as características que o "bispo" (masculino) deveria ter. Além deste facto, importa salientar que, em Romanos 16:2, Paulo utiliza um termo, que surge uma única vez em todo o Novo Testamento, para descrever Febe: "prostatis". Por entre as diversas nuances de significado que este termo pode ter, destaca-se o de "líder", atendendo ao facto de se tratar do feminino de "prostates", termo usado no primeiro século e não só, para identificar líderes (masculinos). Perante a força e a riqueza de significado que este termo encerra, considero perverso o reducionismo habitual e tradicional, em relação à interpretação do mesmo, transformando Febe numa mera estalajadeira. Assume particular importância o facto de Paulo elaborar que Febe já se tinha constituído como "prostatis" não só de vários irmãos, com dele próprio, o que disfere uma machadada fatal na misoginia de que é, frequentemente, acusado. Elaboro uma discussão mais detalhada deste termo no seguinte artigo: https://vidaemabundancia.blogspot.com/2024/06/lideranca-feminina-romanos-128-161-2.html?m=0.
Mandamentos recíprocos
Finalmente, se, de facto, não se pretendia que a mulher desenvolvesse, de todo, o exercício de dons, em ministérios pastorais, por que razão são dados, a toda a igreja (tanto a homens como a mulheres), diversos mandamentos recíprocos, relativos a tarefas eminentemente pastorais? Por que razão nos mandaria Paulo admoestarmo-nos uns aos outros, se as mulheres não o pudessem fazer (Romanos 15:14)? Por que razão mandaria Paulo que todos os membros tivessem igual cuidado uns dos outros, se às mulheres não lhes competisse terem esse tipo de atenção pastoral (I Coríntios 12:25)? Por que razão nos mandaria Paulo exortarmo-nos e edificarmo-nos uns aos outros, se as mulheres não devessem exercer um ministério com essas características (I Tessalonicenses 5:11)? Por que razão nos mandaria o escritor ou a escritora da carta aos Hebreus exortarmo-nos uns aos outros, se as mulheres não pudessem desempenhar tarefas pastorais como essa (Hebreus 10:24-25)? Por que razão nos mandaria Paulo ensinarmo-nos uns aos outros, se as mulheres não o pudessem também fazer (Colossenses 3:16)? Se é certo que existe distinção entre a vivência dos mandamentos recíprocos, por parte de toda a igreja, e o exercício de ministérios pastorais de liderança, também é certo que as funções que compõem estes últimos estão todas presentes nos mandamentos recíprocos. E, se algum destes estivesse vedado às mulheres, a sua formulação não poderia ter sido num contexto de reciprocidade independente do sexo.
Exceções
Perante a abundância de evidências de que as mulheres ensinavam, pregavam, lideravam, aconselhavam, enfim, pastoreavam, os defensores de que as mulheres não podem ser pastoras, argumentam, por exemplo, que essas evidências não passam de exceções à regra geral proibitiva. Constroem assim uma teologia de exceção, de acordo com determinadas circunstâncias. Se for para com as crianças, para com outras mulheres, no lar e em presença do marido, pode ser, defendem. Sem ser nessas circunstâncias, não pode ser. Este é um dos exemplos mais claros de "interpretar" o texto, não de acordo com o que ele diz e mostra, mas de acordo com os pressupostos de quem o interpreta. Quando nos deparamos com uma aparente contradição de interpretação bíblica (como é o caso da mulher "não poder ensinar", ao mesmo tempo que encontrarmos mulheres a ensinar) manda a boa hermenêutica que admitamos que, pelo menos, uma das conclusões que estamos a retirar dos textos "contraditórios" não deve estar correta. Quando assim é, importa rever o processo interpretativo, para perceber onde errámos. Em vez desse exercício, os objetores ao ministério pastoral feminino preferem um caminho que lhes é mais fácil e conveniente: criar exceções. Por outro lado, também há os que universalizam, de facto, todas as proibições relativas à mulher e não só a proíbem de pastorear, mas de falar e de ter qualquer intervenção, no contexto da igreja. Apesar do absurdo desta posição, consegue, ainda assim, ser mais coerente com o registo bíblico, do que os que se esquivam à devida interpretação contextualizada, com o recurso às "exceções". Afinal, se as proibições registadas, nos contextos originais, são de aplicação universal, não podem ser outra coisa que não universais!
Conclusão
Será que não há pastoras, no Novo Testamento? Se se referem ao título, não, não há. Se se referem ao ministério, às funções, ao cuidado, à liderança, à pregação, aos dons, ao ensino, à admoestação, enfim, ao pastoreio, então, sem dúvida que as há! E, apesar de, para um leitor do século XXI, estes elementos acima descritos poderem parecer insignificantes e pouco relevantes, para o cidadão do século I, eles eram absolutamente revolucionários. É, portanto, com os óculos do contexto daquela época que temos que olhar para todo este despontar de intervenção feminina que, a pouco e pouco, surge nas páginas do Novo Testamento e que se apropria da redenção completa trazida pelo Evangelho. Infelizmente, temo que, por demasiado tempo, a igreja tem seguido no sentido contrário, em relação ao que se iniciou no primeiro século. O machismo, a misoginia e o patriarquismo aplicaram o rolo compressor do autoritarismo hierárquico, alimentado pelo combustível do tradicionalismo para, ao longo da história, escamotear tudo o que tinha sido alcançado, durante os primeiros anos do Cristianismo. Mais grave ainda é quando esta obliteração das possibilidades femininas acontece a coberto de uma alegada ortodoxia bíblica, que mais não é do que um impressionante castelo de cartas, construído à custa de hermenêuticas enviesadas, contaminadas e preconceituosas.
O desafio da igreja, hoje, em relação às pastoras que "não existem no Novo Testamento", não é distanciar-se do registo bíblico, para se modernizar, aculturar ou contextualizar. É exatamente o contrário. É precisamente na medida em que recuperamos a pureza e a simplicidade das Escrituras que vamos perceber a forma redentora como o Evangelho é atual e contemporâneo. Compete à igreja ver para lá do clericalismo, do sacerdotalismo, do formalismo, do autoritarismo, do tradicionalismo e recuperar a dinâmica de liderança da igreja realmente bíblica. Esta não depende de títulos, cargos, posições, hierarquias ou ofícios. Depende dos dons, que Deus dá a cada um como quer, e da sua utilização, nos mais variados ministérios, independentemente do sexo de cada pessoa. Não podemos permitir que a cultura de abafamento da presença, do potencial e das oportunidades concedidas pelo Evangelho à mulher continue, como a igreja tem permitido até aqui. Cumpre-nos a obrigação de continuar o desenvolvimento dos tais "afloramentos" de ministério feminino que encontramos nas páginas do Novo Testamento.
[1] ChatGPT. “O contexto da mulher no primeiro século.” OpenAI, 27 de fevereiro de 2025.
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