O sacramentalismo é um sistema de crenças que defende que a realização de determinados atos religiosos confere a graça de Deus à pessoa que participa nesses atos. A Igreja Católica Romana, por exemplo, defende um sistema sacramental mediante o qual a própria salvação só é conferida com a realização de determinados sacramentos. Aquela igreja celebra sete sacramentos, que são: batismo, confirmação (ou crisma), eucaristia, reconciliação (ou penitência), unção dos enfermos, ordem e matrimónio. Segundo a sua doutrina, todos os sacramentos estão ordenados para a Eucaristia como para o seu fim (S. Tomás de Aquino). Na eucaristia, renova-se o mistério pascal de Cristo, atualizando e renovando assim a salvação da humanidade. Segundo a doutrina Católica Romana, o sacramento católico é um ato ritual destinado aos fiéis, para receberem a graça de Deus, e destinado também a conferir sacralidade a certos momentos e situações da vida cristã; os sacramentos foram instituídos por Jesus Cristo e confiados à Igreja como sinais sensíveis e eficazes da graça, mediante os quais nos é concedida a vida divina ou a salvação; através destes sinais ou gestos divinos, Cristo age e comunica a sua graça, independentemente da santidade pessoal do ministro, embora os frutos dos sacramentos dependam também das disposições de quem os recebe.
As igrejas Evangélicas, por outro lado, não ensinam um sistema de atribuição da graça divina através da realização de sacramentos, pois concluem, à luz do ensino bíblico, que esse sistema redunda numa tentativa de merecer a graça de Deus ou o seu favor, através de obras; esse esforço é contrário à própria definição de graça – favor imerecido, e, assim, o relacionamento entre Deus e os seus filhos ficaria reduzido a uma negociação entre os atos que nós fazemos e a graça que Deus ficaria como que obrigado a conceder; graça de Deus não depende de atos que possamos realizar, conforme a clara explicação de Paulo em Efésios 2:8-9: “Pois sois salvos pela graça, por meio da fé, e isto não vem de vós, é dom de Deus; não por obras, para que ninguém se glorie”. A concessão da graça divina não depende de obras ou quaisquer atos nossos. Recebemo-la, simplesmente pela fé.
Todavia, apesar da doutrina evangélica afirmar-se contrária ao sistema sacramental, a verdade é que, do ponto de vista prático encontramos diversos resquícios de sacramentalismo na vida das igrejas. São posturas profundamente enraizadas num passado católico, num contexto cultural e religioso predominantemente católicos e numa, ainda mais profunda, necessidade humana de fazer por merecer a graça de Deus. Este sacramentalismo residual revela-se em diversos momentos da liturgia, através da realização de atos, cerimónias, rituais e palavras que adquirem um significado perigosamente próximo do sacramental. Embora graça e bênção não sejam sinónimos puros e simples, do ponto de vista prático, as posturas sacramentais nas igrejas evangélicas redundam numa quase equivalência destes dois termos.
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Mas, não é só a participação nos cultos que enferma de uma atitude sacramental. Quando paramos para avaliar e testar os nossos atos religiosos e o ensino que os acompanha, teremos de concluir que existem outras situações em que permitimos que o sacramentalismo se instale. Verifique-se, por exemplo, a nossa postura em relação à Ceia do Senhor. Defendemos (de forma biblicamente acertada) que no momento em que participamos do pão e do vinho, nada mais acontece do que a ingestão daqueles dois elementos físicos que servem para trazer à nossa memória o sacrifício de Jesus pelos nossos pecados. Acreditamos que o pão não deixa de ser pão, nem o vinho deixa de ser vinho, constituindo unicamente, um memorial de Jesus. No entanto, a solenidade e até algum aparato que envolvem a sua celebração, inevitavelmente, passam a imagem de se tratar de alguma coisa tão especial que confere bênção igualmente especial aos que nela participam. Consequentemente, a Ceia do Senhor deixa de ser um momento simples, em que nos lembramos da bênção que foi a entrega de Jesus por nós, para passar a ser a bênção em si mesma. Lembro-me, particularmente, de um pastor que exortava uma irmã que não tinha facilidade em ir ao culto, a ir “pelo menos” no domingo de celebração da Ceia do Senhor, incutindo o pensamento de que nesse culto a bênção seria maior ou melhor. E o que dizer de ministrar a Ceia do Senhor a pessoas em particular? É certo que podemos entender nesse ato um gesto de amor e generosidade para com quem não pode reunir-se, mas não estaremos a fomentar uma visão sacramental em relação a esta celebração? Não estaremos a dar ao ato e aos elementos materiais mais importância do que a realidade que eles representam? Não estaremos a alimentar o pensamento de que participar daqueles elementos é uma bênção? Afinal, é tão importante, que estamos dispostos a levá-los onde for necessário.
O batismo é outro ato que parece ter ganho um peso e uma importância para além do que as Escrituras indicam. Ensinamos, corretamente, que o batismo é um ato de testemunho público, em obediência ao Senhor, pelo qual dizemos aos outros que a nossa vida velha já morreu e já nascemos de novo, para uma vida com Jesus. Ensinamos que essa morte da vida antiga e a nova vida não ocorrem no momento do batismo em água, mas aconteceu quando nos arrependemos dos nossos pecados e depositámos a nossa fé em Jesus. O batismo é, portanto, um ato subsequente à nova vida, em que damos testemunho público da mesma. No entanto, o modo como a prática em relação ao batismo tem vindo a distanciar-se da simplicidade bíblica, tem contribuído para o tornar num fim em si mesmo. Na prática, não defendemos que deve ser batizado todo o que confessa a sua fé em Jesus. Em vez disso, defendemos que deve ser batizado todo o que deixou os seus pecados – entenda-se vícios visíveis – e frequentou uma classe de catecúmenos. Não há nada de errado em deixarmos os nossos pecados (visíveis e invisíveis) e é muito proveitoso aprendermos mais sobre a Palavra de Deus. O problema está em permitir que se pense que o batismo é uma meta, um alvo, um propósito que é alcançado no fim de um processo, transformando-o numa espécie de prémio. A consequência inevitável é pensar-se que o ato traz, em si mesmo, alguma bênção especial e é, de certa forma, um sinal da aprovação de Deus.
Somos ensinados que existem atos dos quais Deus se agrada e, como tal, irá abençoar-nos mediante a nossa observância dos mesmos. Mas, será que a Bíblia não ensina que a bênção vem através da nossa obediência? Ou seja, não será verdade que quando praticamos alguma coisa em obediência à vontade de Deus, seremos abençoados? Em primeiro lugar, Deus não está condicionado à nossa obediência para nos abençoar, nem para derramar a sua graça sobre nós. Nem a nossa obediência coloca qualquer tipo de obrigação sobre Deus, para que nos abençoe. Ele fá-lo, mediante o exercício soberano da sua vontade e não mediante as nossas obras. Em segundo lugar, a obediência não leva à bênção, a obediência é a bênção. A felicidade em Deus não vem como resultado ou recompensa da nossa obediência. A obediência é a própria felicidade. Em terceiro lugar, não devemos confundir a obediência a todo o conselho de Deus com a observância, mais ou menos mecânica e artificial, de alguns atos religiosos. De certa forma, podemos dizer que faz parte da obediência integral a Deus não nos sujeitarmos à observância de alguns atos enquanto fontes de bênção ou favor divino.
Esta análise sobre atos que adquirem um valor sacramental na nossa vivência cristã poderá ser feita em relação a tantos outros momentos e situações, como por exemplo, o ficar em pé ou o ficar de cabeça baixa, o fechar os olhos, o levantar os braços, os cânticos e hinos, as imposições de mãos, os jejuns e, mesmo, a participação em estudos bíblicos. Nada disto é errado em si mesmo. Aliás, muito pelo contrário, são atos biblicamente sustentados. Mas, realizar estes atos com o pressuposto de que nos vão conferir algum tipo de bênção ou favor de Deus é puro sacramentalismo. O sistema sacramental leva, inevitavelmente, a uma vivência cristã baseada na negociação, no deve e haver, no toma lá, dá cá em que, se eu faço isto e aquilo, Deus vai me abençoar. Isto não é graça, é negócio. E Deus não negoceia connosco. Aquilo que nos dá é sempre fruto da sua graça, a qual nunca vamos merecer. No momento em que merecêssemos a graça de Deus ou contribuíssemos para esse merecimento, passaria a ser dívida de Deus para connosco e deixaria de ser graça.
É responsabilidade da liderança da igreja garantir um ensino bíblico saudável, sem distorção, consistente com o texto bíblico, ao mesmo tempo que promove vivências práticas coerentes com o mesmo. Não podem existir cedências. Pressupostos enraizados em experiências religiosas deformantes, originados pela natureza enganadora do nosso próprio coração, têm de ser transformados, pela renovação da nossa mente, à luz da simplicidade das Escrituras. A liderança não pode, sob pretexto algum, servir-se desses pressupostos, de modo a fabricar uma vivência pseudocristã que mais não é do que um prejudicial sacramentalismo.
Olá! Muito bom o texto, parabéns! Fez com que eu refletisse sobre vários pontos que eu nunca havia pensado. Abraços!
ResponderEliminarÓtimo texto!
ResponderEliminartexto jóia.
ResponderEliminarMuito bom.
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