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O paradoxo da sujeição mútua

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Sujeitai-vos uns aos outros

A igreja é uma entidade sem paralelo, em toda a História e em todas as culturas. Detém um conjunto de características que lhe são únicas e a distinguem de tudo o mais que existe. A instituição da igreja no mundo é descrita nos livros da Bíblia, e também lá encontramos diretrizes e orientações sobre como ela deveria funcionar através das épocas, servindo na Terra de testemunho dos valores do Reino dos Céus. Contudo, quase com tanta frequência quanto a igreja correspondeu aos ideais para os quais foi criada, ela também falhou em viver de acordo com eles.

em diversos contextos, ao longo da história, (a igreja) tem estado na origem de sistemas hierárquicos opacos e participado em corruptos jogos poder, internos e externos à sua estrutura.

Um dos elementos que determinam a identidade única e ideal da igreja é o conceito da sujeição mútua. Em nenhum outro lugar na História da Humanidade encontramos um princípio como o que a Bíblia apresenta, de acordo com o qual todas as pessoas estão sujeitas umas às outras e, na realidade, ninguém está acima de ninguém, nem sujeita ninguém.

Infelizmente, em muitos casos, a igreja não se tem tornado conhecida como um ambiente de humildade, nem de mútua sujeição. Pelo contrário, em diversos contextos, ao longo da história, tem estado na origem de sistemas hierárquicos opacos e participado em corruptos jogos poder, internos e externos à sua estrutura.

Porém, a Bíblia apresenta mandamentos claros e diretos que colocam em causa todas estas estruturas, e parecem acusar a presença de um paradoxo. Entre eles estão os dois seguintes:

Efésios 5:21 – “Sujeitando-vos uns aos outros no temor de Deus.

I Pedro 5:5 – “Semelhantemente vós, jovens, sede sujeitos aos anciãos; e sede todos sujeitos uns aos outros, e revesti-vos de humildade, porque Deus resiste aos soberbos, mas dá graça aos humildes.


Isto levanta uma questão: o que significa, afinal, a sujeição mútua?

Para muitos, não é mais do que uma forma “bíblica” de dizer que devemos ser respeitosos e cordiais uns para com os outros; que devemos ser simpáticos e humildes. Embora essas atitudes sejam importantes e parte do ensinamento Bíblico, o conceito de sujeição vai muito mais além e é muito mais profundo do que isso. A palavra usada no texto original (Ὑποτασσόμενοι - Hypotassomenoi) significa, literalmente, “colocar-se sob ou classificar-se abaixo de, sujeitar-se, obedecer”. A força deste termo lembra outros textos na mesma linha, como Romanos 12:10 (“Amai-vos dedicadamente uns aos outros com amor fraternal. Preferindo dar honra a outras pessoas, mais do que a si próprios.”), Filipenses 2:3 (“Nada façais por contenda ou por vanglória, mas por humildade; cada um considere os outros superiores a si mesmo.”), e Mateus 20:26, 27 (“Não será assim entre vós. Ao contrário, quem desejar ser importante entre vós será esse o que deva servir aos demais. E quem quiser ser o primeiro entre vós que se torne vosso escravo.”).


Uns aos outros, como assim?

Os textos que se referem à sujeição “uns aos outros” podem ser vistos sob três pontos de vista.

Um destes, e talvez o mais tradicional (Barnes, Matthew Poole, Gill), afirma que esta expressão é uma instrução genérica, abrangente e global, mas que se aplica ou concretiza nas instruções mais específicas que são posteriormente referidas. Ou seja, na prática, é como se “sujeitai-vos uns aos outros” não se aplicasse literalmente a todos, por inteiro e em todas as circunstâncias (no contexto da igreja), mas sim a algumas situações ou relações específicas que são detalhadas em outros lugares da Bíblia, como a sujeição dos crentes (rebanho) aos líderes (pastor), das esposas em relação aos maridos (alguns diriam, até mesmo, das mulheres em relação aos homens em geral), dos filhos em relação aos pais, dos servos (empregados) em relação aos senhores (empregadores). Sob este prisma, esta expressão não assume um papel maior do que uma declaração de intenções, sendo que a sua materialização acaba por ser unidirecional (sujeição de alguns a outros) e circunscrita a determinados relacionamentos.

Um segundo ponto de vista poderá ser a interpretação de que, de facto, todos devem estar em sujeição mútua, sendo, no entanto, criadas exceções a essa mutualidade, quando nos deparamos com instruções específicas de sujeição. De acordo com esta abordagem, a sujeição é sempre mútua, exceto no que diz respeito às relações acima referidas (esposas em relação aos maridos, congregação em relação aos líderes, filhos em relação aos pais e servos em relação aos senhores), situações nas quais a sujeição passa a ser unidirecional. Apesar de partir de um pressuposto diferente em relação à universalidade do mandamento da sujeição mútua, na prática esta interpretação torna-se idêntica à anterior.

De uma forma ou de outra, ambas estas abordagens esvaziam a expressão “sujeitai-vos uns aos outros” das suas implicações práticas e transformam-na num mandamento condicional, visto que valorizam muito mais as referências a situações de sujeição unidirecional e as interpretam como sendo exceções ao mandamento.

A grande dificuldade com ambas estas abordagens é que não levam até às últimas consequências o mandamento de nos sujeitarmos “uns aos outros”, acabando por o relegar para um segundo plano, na melhor das hipóteses. De uma forma ou de outra, ambas estas abordagens esvaziam a expressão “sujeitai-vos uns aos outros” das suas implicações práticas e transformam-na num mandamento condicional, visto que valorizam muito mais as referências a situações de sujeição unidirecional e as interpretam como sendo exceções ao mandamento.

Um terceiro ponto de vista pelo qual se pode abordar esta expressão é induzindo que a sujeição mútua se aplica, de facto, a todos (tal como afirma a própria expressão), e que, portanto, as suas implicações devem ser encontradas em todos os relacionamentos no contexto da igreja, independentemente de outras menções que a Bíblia faça a algumas relações de sujeição específicas. Sob esta terceira forma de a entender, a sujeição mútua estende-se e aplica-se, realmente, a todos e constitui-se como o princípio que preside e tem preponderância em relação a todas as demais instruções sobre sujeição. Desta forma, cada uma das outras orientações específicas só pode ser realmente compreendida e aplicada quando interpretada à luz da existência de uma sujeição que é, de facto, mútua e governa todas as demais. Por outras palavras, todas as formas de sujeição específica devem ser interpretadas em subordinação àquela que Paulo refere em primeiro lugar – a mútua –, horando, desta forma, o conceito de a mesma ser devida “uns aos outros”, no seu sentido mais completo e abrangente.

Parece-me que esta terceira abordagem de interpretação da sujeição mútua é a que lhe faz mais justiça do ponto de vista bíblico, e é a forma que lança a melhor luz para a compreensão de todas as referências à sujeição entre crentes no seio da igreja. Além disso, esta terceira abordagem é a que parece harmonizar-se da melhor forma com todos os outros textos acima citados, bem como outros que ainda exploraremos adiante.

estas relações de sujeição são frequentemente interpretadas e ensinadas como sendo unidirecionais, de maneira que o conceito de sujeição mútua, (...) se dilui nas noções gerais de respeito, cortesia e humildade (...), de tal forma que, na prática, acaba por significar quase nada.

Quando ouço alguns pregadores fazerem uso de textos que se referem à sujeição devida pelos crentes aos líderes religiosos, pelas esposas aos seus maridos, pelos empregados aos patrões e pelos filhos aos seus pais, normalmente vejo-os conseguir levar o significado destes textos até às suas últimas consequências, no sentido de identificar, com clareza, as implicações e aplicações práticas dessas sujeições. Contudo, estas relações de sujeição são frequentemente interpretadas e ensinadas como sendo unidirecionais, de maneira que o conceito de sujeição mútua, quando aplicado, por exemplo, ao marido, aos pais, e aos senhores, se dilui nas noções gerais de respeito, cortesia e humildade (na melhor das hipóteses, em algum nível condescendente de autossacrifício), de tal forma que, na prática, acaba por significar quase nada.


Uns aos outros significa uns aos outros

Contudo, é fundamental perceber que a Palavra de Deus apresenta o princípio da sujeição mútua como um de aplicação plena e universal, que abrange e inclui todos na igreja; e apenas após fazer esta afirmação, a Bíblia prossegue em detalhar alguns casos específicos em como essa sujeição deve ser observável. Isto deve levar-nos a concluir que toda e qualquer relação de sujeição específica é subserviente e está condicionada pelo princípio da sujeição mútua. Assim sendo (não me referindo às relações de sujeição externa, como por exemplo às autoridades – Romanos 13:1), tudo o que possa vir a ser dito sobre essas outras relações de sujeição específicas irá excluir conceitos que lhe são antitéticos como o de autoridade, de hierarquia ou de posição hierárquica. Aliás, por outras palavras, a simples presença de qualquer tipo de autoridade (entre pessoas, no contexto da igreja) anula por completo a possibilidade de aplicação do conceito da sujeição mútua.

Porque só faz sentido falar de sujeição da esposa em relação ao marido dentro do contexto de uma sujeição mútua, e só faz sentido falar de sujeição em relação aos líderes religiosos à luz da prevalência da sujeição mútua, e por aí adiante.

A primeira e máxima sujeição é devida, por todo o crente, ao Cabeça da igreja que é Jesus. Jesus não é representado por nenhum líder humano, mas sim pela Sua Palavra. Ela é a autoridade máxima na igreja, em relação à qual a sujeição de todos tem de ser inquestionável. Depois desta primeira e máxima sujeição, sob a qual todos se colocam, voluntariamente e igualmente, surge a abrangente e transversal sujeição mútua, porque inclui (mais uma vez) todos. Só depois surgem as demais relações de sujeição específicas (acima referidas), por se tratarem de casos particulares. Assim, estas últimas têm de ser entendidas no contexto da que lhes está acima – a sujeição mútua. E, desta forma, o paradoxo multiplica-se. Porque só faz sentido falar de sujeição da esposa em relação ao marido dentro do contexto de uma sujeição mútua, e só faz sentido falar de sujeição em relação aos líderes religiosos à luz da prevalência da sujeição mútua, e por aí adiante.

O verdadeiro desafio em entendermos este ensinamento, e, diria eu, a principal razão pela qual tantas vezes a igreja falhou e continua a falhar em incorporá-lo na sua vivência de forma total e incondicional, é porque no mundo as coisas não funcionam assim. No mundo, o conceito de sujeição é apenas um lado da moeda, incompleto sem a sua outra face, na qual reside o exercício de autoridade por outrem sobre aquele que é submisso. Se alguém se sujeita, certamente significa que aquele a quem se sujeita está numa posição de autoridade. Por defeito, é assim que pensamos; e, por isso, tentamos forçar interpretações (eisegese) dos textos Bíblicos que os enchem de condições e exceções, porque o conceito divino não parece caber na nossa mente, como se não fizesse sentido. Na verdade, a ideia de sujeição mútua é completamente contracultura – e não devemos pensar que o é apenas para “a cultura do mundo, lá fora”; é-o, em primeiro lugar, para nós mesmos, que viemos do mundo, e nos encontramos num contínuo e inacabado processo de santificação.

Porque, se a sujeição é mútua (...), ao mesmo tempo que todos se estão a sujeitar aos outros, ninguém está a sujeitar ninguém; enquanto todos se colocam abaixo dos outros, ninguém pode colocar-se acima de qualquer outro; enquanto todos assumem voluntariamente uma posição inferior, ninguém detém qualquer posição hierárquica superior.

De facto, onde existe sujeição por si só, existe exercício de autoridade pela outra parte envolvida; existe hierarquia, existem níveis ou posições distintas entre os intervenientes. Mas Jesus Cristo vem ao mundo e apresenta-nos um conceito radicalmente novo: onde existe sujeição mútua, nenhuma daquelas coisas é sequer possível. Porque, se a sujeição é mútua (uns aos outros), inclui todos e isto significa que, ao mesmo tempo que todos se estão a sujeitar aos outros, ninguém está a sujeitar ninguém; enquanto todos se colocam abaixo dos outros, ninguém pode colocar-se acima de qualquer outro; enquanto todos assumem voluntariamente uma posição inferior, ninguém detém qualquer posição hierárquica superior.


Onde todos se sujeitam, ninguém exerce domínio

Em suma, nas relações onde existe sujeição mútua, não existe qualquer posição, função, ofício ou exercício de autoridade. Por isto, e porque parece inconcebível que todos se sujeitem sem que ninguém detenha qualquer tipo de autoridade (exclusão feita, como é claro, a Jesus Cristo, na qualidade de Cabeça da Igreja), parece-me que a sujeição mútua é, de facto, um paradoxo. Um paradoxo exclusivo e essencial para a matriz da vida em igreja. Este aplica-se a todos os que fazem parte da igreja. A todos! Aplica-se a homens, mulheres, patrões, empregados, pais, filhos, judeus, gentios, líderes, liderados, professores, pastores, músicos, tesoureiros, zeladores, missionários, obreiros, anciãos e neófitos. “Uns aos outros” inclui e implica todos, e todas as suas implicações vigoram a 100% sobre todos os membros da igreja!

Temos de compreender que a igreja é chamada a viver um paradoxo que lhe é exclusivo, o da sujeição mútua, sem exercício de autoridade.

A verdade é que não é fácil conceber nem operacionalizar um grupo de pessoas em que ninguém tem autoridade, mas onde todos se encontram numa situação de mútua sujeição. A tendência humana será decalcar o padrão de organização social secular, onde os modelos de liderança incluem, necessariamente, a noção de hierarquia e relação de autoridade, por mais tácita ou implícita que seja a sua manifestação. Para concebermos o conceito de sujeição sem que tal implique o exercício de autoridade por uma outra parte, temos de nos obrigar a sairmos dos modelos de pensamento humanos ou, usando linguagem bíblica, carnais. Temos de compreender que a igreja é chamada a viver um paradoxo que lhe é exclusivo, o da sujeição mútua, sem exercício de autoridade.

Um dos maiores desafios que a igreja enfrenta neste capítulo é o de aprender a conviver com o paradoxo. A tentação será, primeiro, diluir o seu significado e impacto e, depois, introduzir o modelo que valida as dinâmicas enraizadas nas relações de uma sociedade caída e, por isso, muito mais fácil de compreender e assimilar. É assim que, naturalmente, conceitos como hierarquia, posições de liderança e autoridade (de pessoas sobre outras pessoas, ainda que sob o pretexto de uma alegada origem e delegação divina) entram na vida da igreja e lavram o terreno onde se desenvolvem os pecados tão naturais ao coração do homem: a prepotência, o autoritarismo, a pura opressão e ostracização, as situações de abuso espiritual, físico e emocional, o racismo, sexismo, idadismo e outras formas de discriminação, o clericalismo, a idolatria ao(s) líder(es), o culto à personalidade, o comodismo, o sacerdotalismo, a usura, entre muitos outros.

A igreja não é lugar para exercer autoridade. É lugar para nos sujeitarmos.

Entender o impacto do exercício da sujeição mútua na igreja é, tão-somente, chegar ao ponto que transmitiu Jesus quando chamou os seus discípulos e disse: "Vocês sabem que os governantes das nações as dominam, e as pessoas importantes exercem poder sobre elas. Não será assim entre vocês. Ao contrário, quem quiser tornar-se importante entre vocês deverá ser servo, e quem quiser ser o primeiro deverá ser escravo; como o Filho do homem, que não veio para ser servido, mas para servir e dar a sua vida em resgate por muitos" (Mateus 20:25-28), e ainda “Vós, porém, não queirais ser chamados Rabi, porque um só é o vosso Mestre, a saber, o Cristo, e todos vós sois irmãos.” (Mateus 23:8).

A igreja não é lugar para exercer autoridade. É lugar para nos sujeitarmos. TODOS! A sujeição é de todos em relação ao único que é e tem toda a autoridade – Jesus Cristo (“Toda a autoridade me foi dada no céu e na terra.” – Mateus 28:18). Esta Sua autoridade está expressa, não nas palavras ou na posição dos líderes, mas sim na Sua Palavra escrita. E esta tem autoridade plena e absoluta sobre todos, da mesma forma e com a mesma intensidade.


Novas criaturas, novos princípios, valores e dinâmicas
https://www.psychologicalscience.org/

Quando percebemos que a sujeição mútua, em vez das relações de autoridade, é o que deve marcar a dinâmica da vida da igreja, textos como Gálatas 3:28 ressurgem com uma nova luz: “Não há judeu nem grego, escravo nem livre, homem nem mulher; pois todos são um em Cristo Jesus.” De facto, se todos estamos tecidos num entrelaçado de sujeição mútua, não podem existir reais distinções entre nós. Diferenças sim, é natural que existam. Existem diferenças entre homem e mulher, entre judeus e gentios, entre patrões e empregados, mas também entre homens e homens, entre mulheres e mulheres e assim sucessivamente. Como é natural, entre todos existem diferenças e ainda bem que assim é. Não temos que anular as diferenças porque elas também nos enriquecem, complementam-nos e constituem a nossa identidade. Mas, ao mesmo tempo, nenhuma delas nos distingue em termos de valor, dignidade, importância, possibilidades, respeito, posições ou cargos. Num contexto de sujeição realmente mútua não há como escapar à aplicação do princípio de que todos se encontram em efetivo pé de igualdade, sem exceções.

Num contexto de sujeição mútua, nunca pode existir sujeição unidirecional, nem exercício de autoridade (...). Em vez disso, existe sempre reciprocidade e mutualidade!

A igreja é uma entidade completamente nova, como novos princípios, valores e dinâmicas. Os seus novos conceitos não são difíceis de entender e aplicar somente a nós, cidadãos do século XXI. Imaginem a dificuldade que uma sociedade de há dois milénios teria para compreender e aplicar esta nova maneira de existir. Mas, mesmo na sua génese, há 2000 anos atrás, o apóstolo Paulo já dava algumas instruções bem práticas de como esta sujeição mútua se concretizava, em alguns relacionamentos específicos. Por exemplo, no que diz respeito à sujeição que o rebanho deve ter em relação ao seu pastor (Hebreus 13:17), Paulo diz em I Coríntios 14:29: “Tratando-se de profetas, falem dois ou três, e os outros julguem cuidadosamente o que foi dito.” (Em relação a “os outros julguem”, alguns defendem que Paulo se referia os outros profetas. No entanto, a interpretação mais correta parece ser “os outros todos”. Ou seja, todos os outros membros da congregação, sendo esta a interpretação mais consistente com o que aconteceu em Bereia – Atos 17:11 – e com outras declarações bíblicas, como a afirmação em I Coríntios 2:16 de que os crentes têm a mente de Cristo, em João 14:26 de que o Espírito Santo nos ensina e lembra os ensinos de Cristo, ou ainda o mandamento universal em I Tessalonicenses 5:21 para examinarmos tudo.) Ao mesmo tempo que a congregação se sujeita aos líderes, estes também estão sujeitos ao seu julgamento e avaliação. Um outro exemplo da aplicação da sujeição mútua encontra-se no caso do marido e esposa, quando Paulo escreve “A esposa não tem autoridade sobre o seu próprio corpo, mas, sim, o marido. Da mesma maneira, o marido não tem autoridade sobre o seu próprio corpo, mas, sim, a esposa.” (I Coríntios 7:4). Estes são somente dois exemplos bíblicos que mostram a operacionalização, ainda que parcial, de algumas relações de sujeição que são, tradicionalmente, ensinadas como unidirecionais. Num contexto de sujeição mútua, nunca pode existir sujeição unidirecional, nem exercício de autoridade (nem sequer me refiro ao autoritarismo, mas à simples autoridade). Em vez disso, existe sempre reciprocidade e mutualidade!

É possível pastorear sem exercer domínio ou autoridade?

Poderão perguntar, por exemplo, “Então, se um pastor não tem autoridade delegada por Deus, como é que vai exercer o seu ministério? Como é que vai admoestar, aconselhar ou assegurar o exercício da disciplina?” O Pastor ou qualquer outro líder cristão não precisa de autoridade para exercer o seu ministério, porque a autoridade de Jesus, contida nas Escrituras é suficiente para tudo o que este e qualquer outro ministério exige: “Toda a Escritura é inspirada por Deus e proveitosa para ministrar a verdade, para repreender o mal, para corrigir os erros e para ensinar a maneira certa de viver.” – II Timóteo 3:16. É para essa autoridade que qualquer líder tem de apontar e não para uma outra qualquer autoridade que julga ter, por força do cargo que ocupa ou do ministério que lhe foi confiado. Quando a autoridade contida nas Escrituras não é suficiente e o líder exerce uma autoridade que julga ter, já estamos em território extrabíblico, que nada tem a ver com a igreja de Jesus (para mais considerações sobre autoridade, no contexto da igreja, consulte o artigo “Liderança Cristã”).


Como é uma igreja onde ninguém exerce domínio ou autoridade sobre o outro?

Como vive, então, uma igreja que implementa a sujeição mútua? Para além do que está acima referido, podemos considerar algumas outras implicações práticas deste princípio. No fundo, a sujeição mútua conduz, inevitavelmente, a uma dinâmica de vida em igual dignidade e valor entre todos os membros, pois é esse o resultado de todos considerarem os outros como superiores a si mesmo. Por exemplo, numa igreja que vive a sujeição mútua, não existem pessoas ou famílias que possam ser consideradas “donas da igreja”, como infelizmente muitas vezes é tradição nas nossas igrejas. Independentemente da classe social, do poder de compra, dos títulos académicos, dos cargos e ministérios exercidos, do tempo como membro de igreja, do volume das ofertas e dízimos, cada membro deve ter igual valor, importância e estatuto. Quando se chega ao momento de tomar decisões, a participação de todos é encorajada e tem o mesmo valor e peso. Numa igreja que vive a sujeição mútua, os ministérios e cargos não são atribuídos conforme o sexo, o estatuto social ou outro qualquer critério, mas sim de acordo com os dons que Deus, soberanamente, atribuiu a cada um. Numa igreja que vive a sujeição mútua, os jovens e as crianças não são a “igreja de amanhã”, não só porque esse é um conceito estranho ao registo bíblico, mas acima de tudo, porque já são igreja hoje, com as mesmas responsabilidades e direitos dos demais. Numa igreja que vive a sujeição mútua, atendem-se às necessidades de todos, por igual e não se fazem homenagens e celebrações especiais em relação a alguns, por serem (mais) “dignos de honra”. Em vez disso, consideram-se todos merecedores da mesma honra e respeito. Numa igreja que vive a sujeição mútua, depois de um convívio, os homens não ficam a conversar, enquanto as mulheres lavam a loiça, varrem o chão e arrumam os restos. Numa igreja que vive a sujeição mútua, os cargos, ministérios, serviços e ofícios não correspondem a posições ou níveis, mas sim a funções, que, embora diferentes, estão todas no mesmo plano e mantêm quem as desempenha em plano de igualdade entre si e com os demais. Numa igreja que vive a sujeição mútua, a última palavra em matéria de doutrina, é a Bíblia e não a palavra pastoral. Numa igreja que vive a sujeição mútua, a última palavra em matéria não doutrinária é a da congregação, através do voto democrático, e não a do pastor. Numa igreja que vive a sujeição mútua, o empresário de sucesso limpa as casas-de-banho, o doutorado em Teologia ensina a classe de pré-escolares da Escola Bíblica Dominical, o tatuado ex-toxicodependente é Tesoureiro, a mulher prega e pode ser Pastora, a septuagenária vota favoravelmente à aquisição da bateria proposta pelos jovens, todos fazem questão de cumprimentar todos, as tarefas menos desejadas são as primeiras a serem escolhidas, líderes e liderados têm o mesmo aspeto, o momento de louvor contém hinos antigos e coros atuais, os líderes aceitam a correção, o adolescente respeita o idoso, os bebés são aceites na celebração, o visitante é recebido calorosamente, e por aí adiante. Numa igreja que vive a sujeição mútua, os títulos não conferem estatuto, os cargos não dão poder e as habilitações académicas não garantem primazia. Numa igreja que vive a sujeição mútua não há o doutor A, o engenheiro B e o irmãozinho C. Em vez disso, todos são irmãos, dignos do mesmo tratamento e deferência, porque foram todos comprados pelo mesmo sangue! Porque, para com Deus, não há aceção de pessoas (Romanos 2:11); porque, perante Deus, não há judeu nem grego, escravo nem livre, homem nem mulher, pois todos são um em Cristo Jesus (Gálatas 3:28); porque, em Deus, um só é o Espírito, que faz todas as coisas e distribui os dons individualmente, a todos e a cada um, não conforme padrões ou preconceitos humanos, mas conforme Lhe apraz (I Coríntios 12:11); porque, no Reino dos Céus, os últimos serão os primeiros, e os que se humilharem serão exaltados, mas os primeiros serão os últimos, e os que se exaltarem serão humilhados (Mateus 20:16; Lucas 14:7-11).


Uma nova identidade

O paradoxo é desconfortável, é contranatura e, por vezes, é de difícil compreensão e aplicação. Não tem paralelo noutras culturas, noutros contextos ou noutros momentos históricos. Mas é absolutamente necessário para uma existência redimida, e é uma das principais marcas identificadoras da identidade da igreja de Jesus. Não aplicar este princípio até às suas últimas consequências é desvirtuar a natureza da igreja, é comprometer uma parte fundamental da essência do corpo de Cristo, e é sacrificar a identidade da igreja em função de outros valores que nos sejam mais compreensíveis e humanamente alcançáveis.

O esforço tem de ser o de investir numa constante transformação da nossa mente, para experimentar a vontade que Deus tem para a vida da igreja.

Quando Paulo escreve, em Romanos 12:2, “E não sede conformados com este mundo, mas sede transformados pela renovação do vosso entendimento, para que experimenteis qual seja a boa, agradável, e perfeita vontade de Deus.”, ele sabia a tendência que temos para nos conformarmos com o que nos é mais cómodo, atingível, habitual, agradável ou compreensível. Comprometer o princípio da sujeição mútua e admitir a existência de relações de autoridade dentro da igreja é nada mais, nada menos que conformarmo-nos com este mundo. É carnal. É excluir da igreja um dos elementos mais concretos da sua ímpar natureza sobrenatural. O esforço tem de ser o de investir numa constante transformação da nossa mente, para experimentar a vontade que Deus tem para a vida da igreja.

Em Mateus 16:18, Jesus disse que edificaria a Sua igreja. Ele é quem a edifica, de acordo com a Sua vontade, os Seus princípios, os Seus valores, as Suas dinâmicas. Além de ser o construtor, Ele é também a principal pedra de esquina. A planta para esta edificação encontra-se nas Escrituras. Enquanto membros do Seu corpo, somos também chamados a cooperar com Ele (I Coríntios 3:9) e a promovermos, em conjunto, a edificação da igreja - “todo corpo, ajustado e unido pelo auxílio de todas as juntas, cresce e edifica-se a si mesmo em amor, na medida em que cada parte realiza a sua função” (Efésios 4:16). Quando não respeitamos as suas instruções e planos de construção, ao desprezar instruções diretas (como é o caso do assunto da sujeição mútua), corremos o sério risco de nos encontrarmos a edificar uma outra coisa qualquer que não a Sua igreja. Pode parecer-se com a Sua igreja, pode até ter o Seu nome, mas não passará de uma farsa. Atentar cuidadosamente para todas as Suas instruções, respeitar as implicações das mesmas e evitar, a todo o custo, a contaminação dos Seus planos com modelos e princípios que não têm lugar na Sua igreja: este é o significado fundamental de buscar primeiro o Reino de Deus e a sua justiça (Mateus 6:33), e é a única forma de nos aproximarmos, cada vez mais, do Seu ideal para a nossa vida, quer enquanto indivíduos, quer em igreja, quer no nosso testemunho para com o mundo.


(Autor: Rúben; Editoras: Luísa e Rebeca)

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