Ao longo da História da humanidade foram sendo estabelecidas normas e preceitos, de acordo com cada contexto cultural, acerca do que é considerado um casamento (ou o ato que o formaliza). Em todas as culturas, de uma ou de outra forma, a religião tem tido um peso considerável nesse estabelecimento. As normas aceites sobre questões como o que é o casamento, quem se pode casar, quem determina que duas pessoas estão casadas, em que circunstâncias se podem divorciar ou voltar a casar e por aí adiante, têm vindo a cristalizar-se na tradição de cada sociedade. De acordo com a preponderância que alguma igreja ou religião tem sobre determinada sociedade ou cultura, essas regras inclinam-se mais ou menos no sentido de reconhecer essa religião ou igreja como entidade reguladora e cuja autoridade deve ser seguida, nesta matéria.
De forma mais intensa em tempos recentes, os conceitos e paradigmas tidos como básicos da família têm vindo a ser desafiados e até transformados, nomeadamente em relação aos temas de casamento, divórcio e segundo casamento. Se, por um lado, percebe-se o peso que a tradição ainda tem sobre a esta instituição, também se constata que correntes mais liberais ou progressistas procuram fugir a essas configurações mais conservadoras. Do ponto de vista do cristão que quer viver a sua vida de acordo com a vontade de Deus, conforme expressa na Bíblia, o segredo não está em refugiar-se na posição mais tradicional, em deixar-se levar pelas mais liberais, nem mesmo em encontrar uma posição de equilíbrio entre ambas. A grande tarefa, por parte do cristão é regressar à Bíblia e descobrir, na sua essência, o que ela, de facto, ensina. O presente texto foi elaborado a pensar em todos os que não só reconhecem a validade do registo bíblico, enquanto Palavra de Deus, como pretendem aplicar os seus princípios à vida diária.
Que respostas dá a Bíblia a questões como: O que determina ou quem define que duas pessoas estão casadas? Quais os papéis da sociedade e da igreja nessa determinação? Que motivos para o divórcio a Bíblia permite considerar como válidos? Em que circunstâncias a Bíblia admite o casamento após o divórcio? É certo que, para cada vez mais pessoas, estas questões e outras semelhantes são irrelevantes, na medida em que não pretendem sujeitar as suas vidas à autoridade bíblica. Mas, particularmente para o crente que aceita a Bíblia como sendo a Palavra de Deus, importa compreendê-la e interpretá-la corretamente, de modo a permitir uma correta identificação dos seus princípios e mandamentos, para uma subsequente aplicação adequada.
Para aqueles que têm a Bíblia em consideração e a aceitam como regra para a sua fé e prática, pode ser problemático identificar com clareza os seus mandamentos e princípios, em relação aos temas de casamento e divórcio. Esta dificuldade fica acrescida quando procuram articular ou harmonizar o registo bíblico com as vivências atuais praticadas pela sociedade em geral. De facto, a Bíblia não se ajusta a uma série de práticas correntes relativas ao casamento, nem ao divórcio, quer em relação ao contexto religioso, quer fora dele. Mas será então que não a poderemos aplicar aos tempos modernos? Será que as interpretações tradicionais que temos feito dos textos bíblicos sobre casamento e divórcio estão corretas?
Casamento
Se o quadro de referência, para o crente, é a Bíblia, então é importante começar por aí. O que lá se encontra registado sobre o casamento, divórcio e novo casamento? Que mandamentos explícitos e claros encontramos? Que princípios podemos subentender a partir do texto bíblico? De que forma aplicamos esses mandamentos e princípios, aos nossos tempos? De seguida percorremos alguns textos cujo estudo poderá ajudar a lançar luz sobre algumas destas questões.
Antigo Testamento
Habituámo-nos a pensar que existem dois tipos de formalização de casamento: o casamento por civil e o casamento pela igreja. A estes dois tipos, recentemente, algumas sociedades ocidentais têm vindo a considerar como equiparado ao casamento civil, a união de facto. Será que alguma destas formas de concretizar o casamento é mais válida do que a outra? Será que alguma destas formas é mais bíblica do que a outra? Será alguma destas formas "aos olhos de Deus", outra "aos olhos dos Homens" e outra nem uma coisa, nem outra? Quem, quando ou como se determina que duas pessoas estão casadas?
Logo no início da Bíblia, depois de Deus verificar que não era bom que o homem estivesse só e criar a mulher, para ser sua parceira e semelhante, lemos uma descrição breve, mas extremamente importante sobre o que pode ser considerado o primeiro casamento, em Génesis 2:24: "Por isso, o homem deixa pai e mãe e se une à sua mulher, tornando-se os dois uma só carne." Aqui, as palavras aplicam-se a Adão e Eva, mas projetam-se profeticamente no futuro, para todos os futuros casais, de toda a humanidade. A partir deste texto, podemos retirar algumas conclusões:
- Dificilmente poderemos considerar como uma união matrimonial sancionada por Deus, conforme o texto bíblico, aquela que não seja entre um homem e uma mulher. Ainda assim, é legítimo que a sociedade crie as condições necessárias para que cada pessoa possa escolher, livremente, como pretende viver a sua vida e com quem a pretende partilhar, desde que a liberdade e os direitos de terceiros sejam igualmente salvaguardados.
- O texto não apresenta três momentos, que seriam: 1) Deixar o pai e a mãe; 2) Unir-se à esposa; 3) Ser ambos uma só carne. Esta interpretação de três momentos induz em erro, por criar a ideia de que existe um momento de união inicial (cerimónia de casamento) e um momento posterior de passar a ser uma só carne (consumação do casamento). A melhor leitura aponta para somente dois momentos: 1) Deixar o pai e a mãe; 2) Unir-se à esposa, resultando em serem ambos uma só carne.
- Apesar do texto estar escrito na perspectiva masculina, tanto o ato de deixar o pai e mãe, como o de se unir ao cônjuge aplicam-se, de igual modo, ao homem e à mulher.
- Este texto não se destina, em exclusivo, ao povo escolhido por Deus, nem à igreja. Uma vez que é claramente anterior à formação do povo Judeu e à instituição da igreja, destina-se a toda a humanidade, tendo entrado em vigor logo desde o início de existência da mesma. Portanto, o casamento não é uma prerrogativa do povo Judeu, nem da igreja, mas sim uma dádiva de Deus a toda a humanidade.
- A união de que fala o texto é a união física, sexual, entre homem e mulher. É essa união que casa os dois, como fisicamente complementares, e que é a própria definição de "uma só carne". Naturalmente, a vivência do casamento não se resume a este elemento "material" ou físico e abrange uma comunhão e intimidade a todos os níveis. Mas a união dos "dois numa só carne" é muito mais concreta e materializada do que outra qualquer afinidade, mais ou menos etérea ou intangível, com que se costuma descrever o casamento: uma só alma, um só espírito, um só coração, um só sentimento, etc.
- O texto está escrito de tal forma que os protagonistas da união são os próprios cônjuges. Ou seja, não é referida qualquer instituição, organismo ou estrutura exterior ao casal que os case ou que os declare como "marido e mulher". Em vez disso, eles tomam a iniciativa: deixam os pais, unem-se e passam a ser uma só carne. Por outras palavras, entidade terceira alguma os casa. Eles casam-se, mediante as condições já providenciados por Deus, podendo-se considerar que, neste sentido, Deus é quem os casa. As decisões e ações aqui descritas são humanas e encontram-se na voz ativa, indicando os seres humanos como responsáveis pelas mesmas.
- Como vemos nesta descrição do primeiro casamento (Adão e Eva), Deus é o Arquiteto do casamento e é a Testemunha do mesmo. Ou seja, Ele colocou as peças no seu lugar, através da criação de Adão e Eva e é quem o presencia (no momento descrito por Génesis 2:24, só existem dois seres humanos e Deus). Assim, quando homem e mulher se unem, fisicamente, fazem-no "perante Deus".
O Antigo Testamento não tem descrições sobre como eram as cerimónias de casamento. Não temos elementos quaisquer sobre se algumas dessas cerimónias teriam ou não carácter religioso. Sabemos que diversas culturas, ao longo do Antigo Testamento, teriam práticas e normas específicas sobre como oficializar o casamento. Com o nascimento do povo Judeu, tal também sucedeu com aquela nação. No entanto, em nenhum texto bíblico encontramos prescrições divinas sobre como deveriam ser oficiados, formalizados ou reconhecidos os casamentos. Em quase todas as referências encontramos elementos que apontam para a existência, pelo menos, de uma festa, banquete ou celebração. Mas, mesmo essas celebrações, não haviam sido definidas por Deus. Nos textos a seguir, encontramos alguns elementos sobre a concepção veterotestamentária da realização do casamento.
- Génesis 24:67: "E Isaque trouxe-a para a tenda de sua mãe Sara, e tomou a Rebeca, e foi-lhe por mulher, e amou-a. Assim Isaque foi consolado depois da morte de sua mãe." Este texto refere-se ao casamento de Isaque e Rebeca. A palavra "tomou" é a tradução do termo hebraico "laqach" e tem um grande leque de possibilidades de tradução: "aceitar, trazer, comprar, capturar, transportar, obter, casar, etc"[1]. Conforme cada contexto, percebe-se que termo será a melhor opção para a sua tradução. No texto acima, a expressão "tomou a Rebeca" surge após a referência de Isaque ter levado Rebeca para dentro da tenda, pelo que se conclui que o termo "tomou" se refere à união sexual entre ambos. Esse ato resultou em Rebeca tornar-se sua esposa. Apesar desta palavra ser amplamente usada sem ser em referência ao contexto de casamento, surge em algumas ocasiões no sentido de um homem ter escolhido uma ou várias mulheres com quem casar, como por exemplo: Lameque (Génesis 4:19), Naor (Génesis 11:29), Abraão (Génesis 25:1), Esaú (Génesis 26:34), etc.
- Génesis 29:22-23: "Então reuniu Labão a todos os homens daquele lugar, e fez um banquete. E aconteceu, à tarde, que tomou Lia, sua filha, e trouxe-a a Jacó que a possuiu." Este texto refere-se ao casamento entre Jacó e Lia. Fala sobre a realização de uma festa, mas nada é dito a respeito de qualquer celebração de natureza religiosa. O termo traduzido como "possuiu" tem a raiz hebraica "bo" que também tem inúmeras aplicações e pode ser traduzido como "entrar, vir, ir, ir para dentro". Algumas traduções usam expressões como "entrou a ela" e outras variantes, numa clara indicação de que se tratou da união sexual entre ambos.
- Génesis 29:30: "E possuiu também a Raquel, e amou também a Raquel mais do que a Lia e serviu com ele ainda outros sete anos." Aqui vemos a referência ao casamento de Jacó com Raquel, onde o termo de raiz "bo" volta a surgir. Mais uma vez, o casamento e aquilo que hoje consideramos a sua consumação (ato sexual) são vistos como sendo exatamente a mesma coisa e acontecendo no mesmo momento. A união física entre marido e mulher era a formalização ou "oficiação" do casamento. Esta era, se assim se pode considerar, a "cerimónia" que certificava que homem e mulher estavam casados.
- Rute 4:9-10: "Então Boaz disse aos anciãos e a todo o povo: Sois hoje testemunhas de que tomei tudo quanto foi de Elimeleque, e de Quiliom, e de Malom, da mão de Noemi, e de que também tomo por mulher a Rute, a moabita, que foi mulher de Malom, para suscitar o nome do falecido sobre a sua herança, para que o nome do falecido não seja desarraigado dentre seus irmãos e da porta do seu lugar; disto sois hoje testemunhas." Neste texto, não estamos perante uma situação de casamento propriamente dito, mas vemos a declaração que Boaz faz em relação a ter tomado ("tomado, adquirido, comprado, ganhado, redimido" [2]), para si, Rute. Um elemento interessante aqui é o de Boaz ter efetuado uma declaração perante testemunhas, em relação ao seu propósito. O momento a que se refere o texto não pode ser considerado como o casamento, mas um ato de dimensão social, com uma declaração pública, a qual parece conferir um aspecto de divulgação e até validação social, equivalente ao que acontece com os banquetes ou festas encontradas em outros textos.
Em suma, o Antigo Testamento não descreve, nem prescreve quaisquer procedimentos de natureza religiosa que configurem uma formalização ou oficiação do casamento. Em vez disso, remete para a união física entre um homem e uma mulher, para que se considerassem ambos como casados. Assim, o casamento não dependia de qualquer elemento exterior aos dois envolvidos, como um organização religiosa, uma instituição civil, um oficiante credenciado, uma declaração, um documento, etc. Na prática, o homem e a mulher tornavam-se numa só carne e estavam casados, sendo reconhecidos como tal, pela sociedade.
Novo Testamento
No Novo Testamento, encontramos quatro referências à formulação de Génesis, em que homem e mulher passam a ser "dois numa só carne". Duas destas referências são textos paralelos das mesmas palavras de Jesus, quando confrontado com a legitimidade do divórcio e as outras duas são do apóstolo Paulo.
- Mateus 19:4-6: "Ele, porém, respondendo, disse-lhes: Não tendes lido que aquele que os fez no princípio macho e fêmea os fez, e disse: Portanto, deixará o homem pai e mãe, e se unirá a sua mulher, e serão dois numa só carne? Assim não são mais dois, mas uma só carne. Portanto, o que Deus ajuntou não o separe o homem." e Marcos 10:6-9: "Porém, desde o princípio da criação, Deus os fez macho e fêmea. Por isso deixará o homem a seu pai e a sua mãe, e unir-se-á a sua mulher, E serão os dois uma só carne; e assim já não serão dois, mas uma só carne. Portanto, o que Deus ajuntou não o separe o homem." Nestes dois textos, Jesus faz referência direta ao registado em Génesis, salientando que Deus criou homem e mulher com o pressuposto da sua união e que aquilo que Deus une, ninguém deve separar. De acordo com a citação do texto de Génesis, Jesus faz equivaler a união entre homem e mulher ao momento em que deixam de ser um só, individualmente, e passam a ser ambos "uma só carne", numa clara referência à sua união física. No fundo, Deus une homem e mulher não só pela anatomia complementar com que os dotou, mas também ao decretar que, mediante essa união física, deixam de ser dois e passam a ser "uma só carne". Do ponto de vista de Jesus, a união efetuada por Deus, entre o marido e a esposa, não carece de qualquer validação, creditação, autorização ou sancionamento por quaisquer terceiros (entidade, pessoa ou ofício).
- Efésios 5:31: "Por isso deixará o homem seu pai e sua mãe, e se unirá a sua mulher; e serão dois numa carne." Na parte final da sua argumentação sobre os contributos recíprocos e mútuos dos cônjuges, Paulo faz uma citação direta do texto de Génesis que estabelece o paradigma do que constitui um casamento. Apesar de se referir, em algumas das suas cartas, a aspectos diversos do casamento, Paulo não prescreve qualquer outra instrução para a sua realização, formalização ou validação, para além do registado em Génesis 2:24. A completa ausência de instruções neste sentido permite concluir que a realização de casamentos não era, sequer, uma prática da igreja cristã do primeiro século.
- I Coríntios 6:16: "Ou não sabeis que o que se ajunta com a meretriz, faz-se um corpo com ela? Porque serão, disse, dois numa só carne." Este texto é absolutamente fundamental, para se compreender a percepção que o apóstolo Paulo tinha sobre a união sexual. Ao citar a parte final de Génesis 2:24 ("dois numa só carne"), no contexto da relação sexual de um homem com uma prostituta, Paulo está a:
- Reforçar o conceito de que "os dois numa só carne" é, efetivamente, uma referência à união sexual;
- Estabelecer um paralelo com o outro texto em que cita Génesis 2:24, quando se refere à união do casamento (Efésios 5:31);
- Criar uma sobreposição entre a intimidade física do casamento e o ato sexual com uma prostituta.
- A conclusão natural da conjugação destes textos é que a relação sexual, mesmo sendo com uma prostituta, era entendida, por Paulo, como constituindo um casamento. Ou seja, aos olhos de Deus, a união sexual, em "uma só carne", não é vista com tendo importância ou valor diferente, de acordo com a circunstância. Trata-se de uma norma absoluta e vinculativa. É por causa desta natureza tão definitiva da intimidade sexual, que Deus odeia tudo o que a viola e destrói, conforme se verifica em diversos textos bíblicos (Êxodo 20:14, Provérbios 6:32-34, Malaquias 2:13-16, Mateus 19:6, 1 Coríntios 6:18-20, 1 Coríntios 7:10-11, Hebreus 13:4).
A percepção desta justaposição entre o ato sexual e a realização do casamento ajuda, por exemplo, a compreender por que razão a Bíblia quase não se refere ao chamado "sexo antes do casamento". A Bíblia fala abundantemente sobre a pureza sexual e moral, bem como em não destruir o casamento, por exemplo, através do adultério e todo o tipo de imoralidade sexual. Mas, na realidade, o conceito de sexo antes do casamento não é, de todo, referido no Novo Testamento e só por uma vez surge algo semelhante a essa ideia no Antigo Testamento. Esta quase omissão do conceito será, provavelmente, pela simples razão de que o sexo constituía a essência do próprio casamento, conforme se verifica, por exemplo, nos textos de Paulo acima indicados. O texto de Êxodo 22:16 parece ser o único com uma referência ao sexo antes o casamento: "Se alguém seduzir uma virgem que não for desposada, e se deitar com ela, pagará o dote e a tomará por mulher." Neste texto, parece existir a distinção entre o ato sexual (quando o homem se deita com ela) e o momento do casamento (quando a toma por mulher). No entanto, em bom rigor, o texto não categoriza o ato sexual como tendo sido antes do casamento, mas redunda-o, obrigatoriamente num casamento, devendo o homem assumir e tornar público/legal esse estado ("tomará por mulher"). Além de procurar restringir a proliferação da promiscuidade sexual, esta norma tratava-se de uma medida de defesa da mulher. Tal era a natureza definitiva da relação sexual e o pressuposto de que constituía a união, que forçosamente teria sempre que ser assumida publicamente a relação matrimonial entre ambos. No fundo, esta assunção pública, após o ato sexual, não constituía uma penalização ou castigo, mas a formalização de um compromisso assumido entre os dois (relação consensual), em privado.
Em nenhum local do Novo Testamento encontramos instruções dadas à igreja ou aos seus líderes para realizarem casamentos, nem normas sobre que rituais, preceitos ou cerimónias deveriam ser observados, para esse efeito. Não existem quaisquer instruções diretas, nem indiretas, para que sejam pastores ou as igrejas a declararem que duas pessoas passam a estar casadas. Algumas das objeções a esta posição defendem que o facto de Jesus ter estado presente numa boda de casamento e de existir, pelo menos, uma parábola que se refere a hábitos culturais relacionados com o casamento é suficiente para assumir que será necessário algum formalismo religioso ou "espiritual", para que um casamento seja válido "aos olhos de Deus". Alguns também acrescentam que, quando Jesus diz à mulher Samaritana que já tinha tido cinco maridos e que o que agora tinha não era seu marido, significa que ela estaria a viver com um homem, sem estar formalmente casada com ele. Argumentam que, assim sendo, é necessário existir um casamento "aos olhos de Deus" (entenda-se "pela igreja"), para que um homem e uma mulher sejam considerados marido e mulher. Este tipo de argumentações não é mais do que um salto interpretativo que, na realidade, de interpretativo nada tem. No fundo, não passam de construções artificiais e arbitrárias, sem qualquer fundamento bíblico. Em rigor hermenêutico, as bodas, a parábola e o caso da mulher Samaritana em nada resultam no que diz respeito à responsabilidade, prerrogativa ou autoridade da igreja, ou de qualquer oficial seu, declarar um homem e uma mulher como estando casados. Por que razão, então, Jesus diz à samaritana que o marido que agora tinha não era seu marido? Não é possível responder a esta questão sem algum grau de especulação, mas algumas das possíveis explicações são: 1) O homem que coabitava com ela era marido de outra mulher; 2) Os Samaritanos tinham, com toda a certeza, uma forma de oficialização civil ou legal do casamento, a qual poderia não ter sido satisfeita; 3) Ela poderia não estar legalmente divorciada do marido anterior, caso aquele não tivesse morrido.
À luz da máxima de que a "Bíblia é a nossa única regra de fé e prática", importa deixar bem claro que não compete à igreja, nem a qualquer oficial da mesma, oficiar ou realizar casamentos. Não é uma ordenança, instrução, mandamento, norma, princípio explícito nem subentendido, em passagem alguma da Bíblia. Aliás, ao arrogar-se a autoridade de declarar um homem e uma mulher como "marido e esposa", a igreja chama a si uma prerrogativa unicamente divina ("o que Deus uniu"), a qual não se encontra delegada na igreja, nem em nenhum dos seus líderes, conforme se confirma através da completa e absoluta ausência de semelhante delegação nas páginas das Escrituras. Ao chamar a si essa incumbência, a igreja ou o líder substitui-se ao próprio Deus. Além disso, entra em choque com o registo bíblico não só por diluir o conceito de "os dois numa só carne" enquanto casamento, mas também ao substituir esse mesmo conceito pelo artificialmente fabricado "casamento pela igreja".
História da igreja
Como vimos acima, nem no Antigo, nem no Novo Testamentos encontramos qualquer instrução para que o povo de Deus ou a igreja realizem cerimónias de casamento. O Novo Testamento não só é omisso quanto à responsabilidade da igreja realizar casamentos, como não contém qualquer elemento que indicie ter sido essa uma prática da igreja primitiva. Este facto, só por si, deveria ser suficiente para impedir as igrejas de construírem doutrina e prática, como se de um mandamento bíblico se tratasse. Mas, como não parece ser suficiente, vejamos também alguns elementos históricos sobre este tipo de cerimónia.
Todos os registos, quer bíblicos, quer extrabíblicos, entre os séculos I e IV d.C. são completamente omissos em relação a casamentos realizados pela igreja ou ao seu envolvimento nesse ato. O casamento era, essencialmente, um contrato civil e comunitário. Era, muitas vezes, uma aliança decidida entre as famílias envolvidas e poderia ter ou não alguma forma de validação legal ou comunitária, de acordo com as diferentes culturas, mas sempre sem a intervenção eclesiástica (cristã). [3]
Com a legalização do Cristianismo, enquanto religião do Império Romano, em 313 d.C., mediante o Édito de Milão (momento entendido pelos protestantes e evangélicos como o início formal da Igreja Católica Apostólica Romana), os cristãos passaram a incorporar alguns elementos religiosos na celebração dos seus casamentos. Embora ainda não houvesse uma intervenção organizada da igreja, em algumas circunstâncias, um sacerdote religioso estaria presente. Mantinha-se, no entanto, o formato civil como norma para a realização do casamento. No Século IV, Ambrósio de Milão (340-397 d.C.) e João Crisóstomo (349–407 d.C.) defendem a importância da bênção sacerdotal da igreja sobre o casamento. Ambrósio defende ainda que o casamento deveria ser realizado na igreja. No Concílio de Laodiceia, por volta de 363-364 d.C., foi recomendado que os casamentos fossem abençoados na igreja. [4]
No século IX surgem mais relatos da participação da igreja no casamento, com os escritos de Adelardo de Corbie a indicarem a importância de um sacerdote abençoar a união do casal e a demonstrar que tal já se tinha tornado numa prática habitual em algumas comunidades cristãs. Só no século XIII, em 1215 d.C, no IV Concilio de Latrão é decretado que todo o casamento deveria ser público, na presença de um sacerdote e com testemunhas. É a partir deste momento que o casamento assume o caráter de sacramento da igreja Católica e passa a estar sob a supervisão da mesma.[5] Esta definição do casamento realizado pela igreja, como sendo um meio de graça (sacramento), bem como o não reconhecimento da validade de casamentos realizados fora da igreja, contribuiu para um considerável aumento do poder e capacidade de influência da igreja Católica sobre a vida dos fiéis.
No século XVI, o movimento da Reforma Protestante veio levantar oposição à tendência da igreja Católica de chamar a si a autoridade de realizar casamentos, entre outras coisas. Todos os reformadores, de uma forma ou de outra, combateram a doutrina de que o casamento era um sacramento e que só seria válido se fosse realizado pela igreja.
Martinho Lutero defendia que o casamento não era um meio da graça, mas uma ordem natural dada por Deus, válida para todos, cristãos ou não. Lutero acreditava que o casamento era um assunto da esfera de ação do Estado, de direito civil e não religioso. Embora concordasse com a participação da igreja no ato do casamento, não entendia que o mesmo só seria válido se fosse realizado nessas circunstâncias.[6] João Calvino também contestava o carácter sacramental do casamento. Defendia que deveria ser um assunto público, realizado publicamente, em que a igreja participasse, essencialmente para abençoar e aconselhar, apesar de reconhecer que a sua regulação pertencia ao Estado.[7] Outros reformadores, como Ulrich Zwinglio e Thomas Cranmer, tinham pontos de vista semelhantes aos de Lutero e Calvino. Rejeitavam a ideia do casamento como sacramento, viam-no como uma instituição civil, incentivando a participação da Igreja, no sentido de fornecer apoio espiritual e orientação aos casais.
A partir do século XVI e até aos nossos dias, as mais variadas igrejas Protestantes e Evangélicas, de várias denominações, foram instituindo a prática de celebrarem casamentos. Embora a maior parte delas não identifique o casamento como um meio de graça, no sentido sacramental, uma grande parte das mesmas não resiste à tentação de considerar como válidos e legítimos, pelo menos "aos olhos de Deus", somente os casamentos realizados pela própria igreja. O salto interpretativo mais comum é o que resulta da consideração que, se o casamento é uma instituição divina (e é), então a igreja é a única credenciada para o realizar de forma válida e legítima (e não é), apesar do absoluto silêncio bíblico sobre o assunto e da própria história da igreja contrariar essa posição.
Alguns defendem que o texto de Mateus 18:18 ("Em verdade vos digo que tudo o que ligardes na terra será ligado no céu, e tudo o que desligardes na terra será desligado no céu.") é base bíblica suficiente para a igreja ter a prerrogativa de "unir" duas pessoas em matrimónio. Este foi, aliás, um dos textos que "alimentou" a evolução da tradição da igreja, sobre este assunto, de acordo com o acima descrito. No entanto, importa referir que a interpretação cuidada deste texto não permite esse tipo de conclusão e aplicação. A maior dificuldade com essa linha de interpretação é que o contexto e assunto que estão a ser tratados por Jesus, nesta passagem, nada têm a ver com o casamento. Este facto, só por si, deveria ser suficiente para o descartar como base para a oficiação de casamentos, sob pena de não horarmos a integridade do texto e obrigá-lo a dizer uma coisa que não diz (só porque dá jeito à doutrina que queremos defender). Desta forma, não estamos a extrair o significado do texto, mas sim a introduzir um significado que não estava lá no início. De facto, este texto, que não é de fácil interpretação, surge numa argumentação sobre perdão e arrependimento, no âmbito do relacionamento entre os irmãos ou membros da igreja e deverá ser a esses assuntos que se deve cingir.
Na realidade, para quem pretende defender que o casamento é uma instituição atribuída à igreja e que esta é quem tem o direito de o realizar de forma válida, legítima e "aos olhos de Deus", importa salientar que o melhor argumento que possuem não é bíblico, mas sim histórico e tradicional. E, ainda assim, nem sequer se podem reportar aos primeiros séculos do cristianismo. O registo histórico demonstra, com elevada clareza, que esta prática extrabíblica nunca foi adoptada pela igreja primitiva, nem foi sequer alvo do ensino doutrinário registado no Novo Testamento. A defesa do conceito de "casamento pela igreja", com tudo o que implica, não satisfaz o princípio de que a Bíblia é a única regra de fé e de prática. Em vez disso, traduz a aceitação tácita da tradição como fonte de autoridade, para definir prática e fé, tal como defende, por exemplo, a igreja Católica.
Casamento civil
Se é certo que, de acordo com o registo bíblico, o casamento é a união dos dois "numa só carne", também devemos reconhecer que, em diversos momentos, está presente um elemento comunitário e social. Quer seja através de uma boda, de um registo de natureza legal ou da divulgação pública perante testemunhas, verifica-se que culturas diferentes tinham configurações diferentes para tornar o casamento um facto de conhecimento geral. Aqui entra o papel do Estado que, em diferentes culturas e em diferentes formatos, tem um papel regulador do casamento.
Quando Paulo e Pedro nos mandam sermos sujeitos às autoridades, enquanto agentes da ação de Deus, em Romanos 13:1-5 e em I Pedro 2:13-17, é possível extrair o princípio de reconhecimento da validade e legitimidade das suas ações, em tudo aquilo que não viola a lei de Deus (Atos 5:29). Ou seja, compete à igreja aceitar as decisões e regulações civis, de acordo com a lei do país, em tudo aquilo que não contrarie a lei divina. Ora, como não existe qualquer lei divina que impeça o Estado de agir, com toda a legitimidade, na realização e regulação do casamento, a igreja tem a responsabilidade de aceitar e acatar essa mesma regulação. Quando se refere que esta aceitação deve ser em tudo o que não contrarie a lei de Deus, deve entender-se, por exemplo, que a igreja não deve ser obrigada a reconhecer, no seu âmbito de ação, como casadas, pessoas que não se enquadrem no plano de Deus para o casamento, como sejam as pessoas do mesmo sexo. Ainda assim, ressalva-se que a igreja deve aceitar que sejam garantidas todas as condições para que, no âmbito mais alargado da sociedade, todas as pessoas possam escolher livremente e de forma consensual como pretendem viver as suas vidas, com quem as partilhar e em que termos.
Reconhecer e aceitar como válidos e legítimos os casamentos regulados pelo Estado significa, por exemplo, que alguém que quer passar a pertencer à igreja e não se encontra casado "pela igreja", mas somente pelo civil, seja liminarmente reconhecido como casado. Este reconhecimento é devido não só pela legitimidade do Estado, mas também pelo facto, de que a exigência de um casamento "pela igreja" não encontra o mínimo suporte bíblico, conforme acima discutido.
União de facto
Diversos países, principalmente do Ocidente, têm vindo, nos últimos tempos, a reconhecer as uniões de facto como equiparadas à situação de casamento. Esta equiparação varia de país para país e depende de critérios variados, em culturas e sociedades diferentes. No nosso país, a união de facto é equiparada, para quase todos os efeitos legais, à união do casamento civil, persistindo, no entanto, algumas diferenças que podem ter implicações em situações fiscais, benefícios sociais e no direito à propriedade. Apesar de tudo, a união de facto tem no seu cerne o conceito da comunhão de vida, estabelecendo, atualmente, uma duração mínima de dois anos, para ser reconhecida como tal. Na sua essência, a comunhão de vida pressupõe o usufruto comum de todos os recursos, bem como a intimidade sexual, o que remete para a essência do próprio casamento, conforme definido no livro de Génesis ("os dois numa só carne").
A legislação do nosso país que contempla e regula a união de facto[8] não faz mais do que simplificar um conceito que se foi complexificando ao longo dos tempos, o qual, na sua génese, era definido em termos bastante mais simples - o casamento. Podemos olhar para esta legislação como um passo em direção à essência bíblica do próprio casamento: duas pessoas que se unem. Tal como acima referido em relação ao casamento civil, apesar desta legislação permitir o reconhecimento da união de facto a casais do mesmo sexo, a igreja não deverá ser forçada a esse mesmo reconhecimento, sob pena de contrariar o preceito divino para a união marital. Para além disso, no que diz respeito às uniões heterossexuais, assiste à igreja a responsabilidade de aceitar esta forma de união como perfeitamente válida e legítima, perante Deus. Esta aceitação deve resultar não só do facto de se tratar de uma lei estabelecida pelas autoridades "ordenadas por Deus", mas, acima de tudo, porque plasma a essência da união matrimonial tal como definida originalmente em Génesis 2:24, citada por Jesus em Mateus 19:4-6 e reiterada por Paulo em Efésios 5:31 e I Coríntios 6:16. Aliás, à luz destes mesmo textos, este reconhecimento da união de facto como sendo um casamento deve verificar-se não ao fim de dois anos, mas logo desde o primeiro dia.
Argumentam alguns que não podemos considerar os unidos de facto ou os que estão casados somente pelo civil, como casados "aos olhos de Deus" ou "perante Deus", porque carecem duma bênção, aprovação ou validação por parte da igreja. Perante esta argumentação, levantam-se algumas questões: Existirá mesmo alguma coisa que podemos fazer que não seja "aos olhos de Deus", ou "perante Deus"? Será que os contratos, vínculos, compromissos, pactos, alianças, etc, que assumimos no nosso dia-a-dia têm que ser realizados pela igreja ou no seu contexto, para que Deus os veja, aprove ou legitime? Será que há algum lugar ou contexto oculto a Deus? Será que toda a nossa vida diária está fora do alcance do Seu olhar e só os momentos "religiosos" é que são alvo da Sua atenção? Será que a bênção de Deus é exclusiva dos atos e cerimónias levadas a cabo pela igreja, à semelhança do que acontece com os sistemas sacramentais?
A única forma segura de verificarmos se algo é ou não "aos olhos de Deus" e se recebe ou não a Sua aprovação é analisando aquilo que Ele próprio nos comunicou no Seu registo escrito - a Bíblia. Nesse registo, conforme acima exposto, estão casados os que se unem de tal forma a serem "uma só carne". Esta é a essência do casamento. Acrescentar preceitos, requisitos, regulamentos, rituais, cerimónias, exigências, etc, é acrescentar palavras à revelação escrita de Deus, como, aliás, a tradição tem o condão de fazer. Por outras palavras e em termos simples: Um homem e uma mulher que se encontram juntos, em união de facto, estão casados "aos olhos de Deus"? Sem dúvida que sim e desde o primeiro dia!
Em Romanos 7:2, Paulo afirma que a mulher está ligada ao marido pela lei: "Porque a mulher que está sujeita ao marido, enquanto ele viver, está-lhe ligada pela lei; mas, morto o marido, está livre da lei do marido." Não é de excluir a possibilidade da referência que Paulo faz à "lei" ser em relação às leis e práticas da sociedade e do tempo em que viveu, em vez de se estar a referir à Lei de Deus. Esta possibilidade é fundamentada por dois elementos: 1) Em nenhum local do Antigo Testamento existe a formulação explícita de uma "ligação" entre marido e esposa que só termina com a morte de um deles (embora seja esse o sentido subentendido). 2) Quando Paulo se refere à "Lei" de Deus, normalmente, utiliza o artigo definido "a Lei", o que não acontece neste texto, conforme se verifica no original. Se for este o caso, o seu texto faz eco de uma preocupação de adequação da vivência da igreja ao contexto legal e civil da sua cultura, numa lógica de "sujeição às autoridades". E, se assim for, fica reforçado que o princípio de adequação ao contexto legal (em tudo o que não contrarie a Lei divina) deve ser seguido pela igreja, por exemplo no reconhecimento da validade e legitimidade do casamento, entre um homem e uma mulher, quer por registo civil, quer por união de facto.
- Do ponto de vista legal, entre a situação da união de facto e a do casamento civil, a proteção de ambos os cônjuges só é efetivamente completa na segunda situação. O registo civil do casamento salvaguarda ambos os cônjuges, em tudo o que a lei prevê, logo desde o primeiro dia, o que não acontece no caso da união de facto, quer em termos temporais (só é reconhecida depois de 2 anos de união), quer em termos do seu âmbito material (direitos e regalias legalmente consagradas).
- Do ponto de vista do testemunho, quando se tratam de cônjuges crentes que pretendem honrar a vontade de Deus, faz sentido que tenham em atenção não somente a realidade, mas a percepção da realidade. Embora a percepção que a nossa sociedade tem da união matrimonial tenha vindo a mudar, os crentes devem levar em consideração a valoração que a cultura ainda atribui à formalização civil do casamento. Por outras palavras, o casamento civil é uma forma não de evitar um comportamento errado, mas de evitar uma aparência de comportamento considerado errado, conforme Paulo escreve aos I Tessalonicenses 5:22: "Abstende-vos de toda a aparência do mal." Assim, o casamento pelo civil poderá ser um contributo positivo para o testemunho que o casal pretende dar, perante a sociedade, não sendo propriamente uma exigência bíblica.
- Em qualquer união, pressupõe-se a existência de um compromisso entre ambos. Se existe um compromisso verbal de convivência, entreajuda, partilha, comunhão, intimidade, etc, na união de facto, o que acontece na formalização civil é a mera redução a escrito desse mesmo compromisso, com a validação do Estado (sociedade). Se o compromisso verbal é verdadeiro e genuíno, certamente nunca será a sua redução a escrito que o prejudicará. Se tal prejuízo ocorre, deve questionar-se a autenticidade inicial do mesmo e não a sua formalização civil. Em certa medida, o acordo verbal parece assumir um caráter mais temporário ou transitório, enquanto que o acordo escrito confere-lhe um carácter mais permanente e definitivo. A formalização civil constitui, assim, uma declaração clara, inequívoca e oficial da vontade dos cônjuges.
Apesar da atual legislação do nosso país reconhecer a união de facto somente após dois anos de união, para o crente que pretende honrar a vontade de Deus, tal não deverá ser o caso. A seriedade e natureza definitiva com que deve encarar a união de facto, uma vez que é um compromisso que assume perante Deus (como, aliás, todos são), deve ser a mesma com que encararia a formalização legal e civil de um casamento oficialmente registado. O crente deve considerar que está efetivamente casado com a outra pessoa, desde o primeiro dia da sua união e a igreja deve reconhecê-lo como tal.
Celebrações
Poderão alegar que, apesar da Bíblia não ordenar expressamente que a igreja realize casamentos, não se pode considerar esse tipo de celebrações propriamente erradas, na medida em que a igreja leva a cabo uma série de outros atos e momentos que não estão literalmente expressos no registo bíblico. De facto, a igreja tem inúmeras celebrações ou ocasiões que, apesar de não serem expressamente ordenadas pela Bíblia, podem ser de grande valor e importância para a sua vida. Poderíamos referir a realização de algumas celebrações de dias especiais, momentos de promoção de missões e outros projetos, serviços fúnebres, cerimónias de renovação de votos, celebração de festividades ou eventos seculares diversos, etc. O grande problema não tem a ver com a possibilidade de se fazerem celebrações que não estão literalmente consagradas na Bíblia. A grande dificuldade surge quando, em vez de uma celebração de gratidão e louvor a Deus, está indelével a afirmação da autoridade e legitimidade exclusiva da igreja, através do seu líder, para declarar que um homem e uma mulher passam a ser marido e esposa, a partir daquele momento. Em termos simples, a igreja não tem legitimidade bíblica para proferir uma tal declaração.
Não existe qualquer erro, do ponto de vista bíblico, em realizar uma celebração da igreja para pedir a bênção de Deus para o casal, para agradecer pelas suas vidas, para que declarem os seus votos publicamente, para que a comunidade tome conhecimento do seu compromisso, para pedir que Deus os conduza em fidelidade, etc, etc. Também não há problema em vestidos de noiva, fato e gravata, troca de alianças, cerimónia das velas, damas de honor, grinaldas, flores, etc. Mas, uma celebração para a igreja os casar, ultrapassa o âmbito permitido à igreja. E isto, não só porque o registo bíblico indica que o casamento é outra coisa completamente diferente de uma declaração ou validação cerimonial oficiada por uma igreja ou líder eclesiástico, mas também porque cria uma má representação do papel da igreja e dos seus líderes. Por outras palavras, a Bíblia não manda a igreja casar. A Bíblia manda as pessoas casarem-se.
Perpetuar a prática do "casamento pela igreja", como se de um mandamento bíblico se tratasse, é seguir num percurso oposto do regresso à Bíblia. Em vez disso, é permitir que a tradição tenha mais valor do que as Escrituras e que seja essa mesma tradição a ditar as nossas práticas e até aquilo em que cremos. Abdicar desse tradicionalismo religioso é abrir mão de uma posição de controlo e domínio sobre uma parte significativa da vida das pessoas e devolver esse poder e autoridade às Escrituras.
Divórcio
Por tudo o que foi considerado acima, em relação à união de facto, como devendo ser encarada, pela igreja, como um casamento "aos olhos de Deus", importa clarificar que a discussão que se segue, relativa ao divórcio deve-se-lhe aplicar de igual modo. Ou seja, se é legítimo reconhecer a união de facto como sendo um casamento, é necessário que os motivos considerados legítimos para o divórcio (no caso de casamento) sejam os mesmos que devem ser considerados igualmente legítimos para a separação (no caso da união facto). Como se compreende, estes critérios aplicam-se, não à generalidade da sociedade, mas ao crentes que pretendem honrar a vontade de Deus, em observância da Sua Palavra. Não é por se tratar de uma união de facto que o crente deve considerar essa união de menor importância ou de carácter menos definitivo. Portanto, toda a argumentação que se segue, diz respeito tanto ao divórcio propriamente dito, como à separação do casal, no caso da união de facto.
Antigo Testamento
A forma como o início da humanidade é descrito em Génesis aponta no sentido do plano de Deus ser de que um homem e uma mulher se unissem e assim partilhassem a sua vida. Como vimos acima, a união era fundamentalmente concretizada fisicamente ("os dois numa só carne") e abrangia as várias dimensões da vida. O divórcio não surge como uma iniciativa divina, para quando alguma coisa não corresse bem, mas como uma saída de recurso, em casos extremos. O texto de Malaquias 2:16 faz eco do sentimento de desagrado que Deus tem em relação ao rompimento da relação do casamento: ""Eu odeio o divórcio", diz o Senhor, o Deus de Israel, e "o homem que se cobre de violência como se cobre de roupas", diz o Senhor dos Exércitos. Por isso tenham bom senso; não sejam infiéis."
No Antigo Testamento, o texto por excelência que se refere à possibilidade de existir divórcio encontra-se em Deuteronómio 24:1-4: "Se um homem casar-se com uma mulher e depois não a quiser mais por encontrar nela algo que ele reprova, dará certidão de divórcio à mulher e a mandará embora. Se, depois de sair da casa, ela se tornar mulher de outro homem, e o seu segundo marido não gostar mais dela, lhe dará certidão de divórcio, e mandará embora a mulher. Ou também, se ele morrer, o primeiro marido, que se divorciou dela, não poderá casar-se com ela de novo, visto que ela foi contaminada. Seria detestável para o Senhor. Não tragam pecado sobre a terra que o Senhor, o seu Deus, lhes dá por herança." Deste texto, podemos extrair as seguintes ideias:
- O direito de acionar o divórcio estava sempre e só do lado do homem. Não se encontra, nem no Antigo Testamento, nem nas leis judaicas, por exemplo, no tempo de Jesus, a possibilidade da mulher se divorciar do marido, com a única possível exceção de Êxodo 21:10-11 (um senhor casava-se com uma serva e se a negligenciasse, por tomar para si outra mulher, a ex-serva poderia "sair livremente"). Apesar de, no tempo de Jesus, algumas culturas de influência greco-romana permitirem que a mulher tomasse essa iniciativa, tal não era possível no contexto judaico.
- O critério para o divórcio não se encontrava definido com clareza ou objetividade. Ao dizer que o marido poderia divorciar-se da esposa se encontrasse "nela algo de ele reprova", abria-se o leque de possibilidades de interpretação. Aliás, o que é descrito em relação à segunda união é que o homem a poderia rejeitar se "não gostasse mais dela". Com base em outros textos relacionados, parece estar subentendido que aquilo que o homem reprovava seria algum motivo de natureza sexual, como poderia ser o facto da mulher não ser virgem (Deuteronômio 22:13-30). No tempo de Jesus, diversas escolas rabínicas contendiam sobre quais deveriam ser estes critérios e se se limitavam a questões de natureza sexual ou moral. A escola de Shammai era a mais restritiva, permitindo o divórcio somente em casos de infidelidade ou imoralidade grave, enquanto que a escola de Hillel permitia o divórcio por praticamente qualquer motivo, até mesmo por motivos triviais como a mulher estragar a comida.[9]
- Quando o marido repudiava a esposa, ela poderia voltar a casar-se, com outro homem. O texto não coloca qualquer entrave a este segundo casamento e identifica o segundo homem como "marido", pelo que tudo indica que o casamento, após o divórcio, era permitido na Lei de Moisés. E isto, mesmo que a "causa" do divórcio tivesse sido, possivelmente, algum elemento menos legítimo (devido ao poder discricionário do homem).
- A limitação só surge caso o segundo casamento terminasse, por falecimento do segundo marido ou por repúdio, e o primeiro marido a quisesse receber de novo. Neste caso, a lei não o permitia, alegando que a mulher tinha ficado "contaminada". Nada é dito em relação a um possível novo casamento dela, com um outro homem. Por esta razão, não é seguro concluir que tal não seria problemático. No entanto, tendo sido referida a possibilidade de um segundo casamento, não é de excluir a possibilidade de que casamentos posteriores pudessem vir a ser permitidos. Aliás, quando Jesus fala com a mulher Samaritana e lhe diz que já tinha tido "cinco maridos", não é de eliminar o cenário de que a hipótese de novos casamentos, após morte ou divórcio, fosse aceite por alguns (ainda que a dinâmica e cultura samaritanas não eram completamente coincidentes com as judaicas).
A escassez de instruções sobre o divórcio, no Antigo Testamento, compreende-se pelo facto de se tratar de uma situação de recurso, a ser evitada e não contemplada no plano original de Deus. O propósito de Deus não era o de facilitar uma forma de terminar o casamento, mas o de promover o investimento e compromisso de homem e mulher numa relação sólida e duradoura. O que viria a acontecer, com o passar do tempo, foi uma construção de doutrina judaica sobre os motivos considerados legítimos para o divórcio. É necessário compreender que essa doutrina foi grandemente enviesada não só pelo facto de ter sido completamente construída por homens, como também pelo próprio contexto patriarcal do Antigo Testamento ter condicionado a linguagem do texto acima citado. Assim, ao chegarmos ao tempo de Jesus, encontramos um ensino sobre esta matéria grandemente comprometido, com graves consequências para as mulheres. O homem era quem decidia se havia divórcio, por que causas e em que momento. Normalmente, a mulher repudiada era marginalizada e ficava destituída de quaisquer meios de subsistência.
Jesus
No Novo Testamento, Jesus é confrontado com o tema do divórcio (particularmente em Mateus 19:3-9 e Marcos 10:2-12) e dá as respostas que encontramos nos seguintes textos:
- Mateus 5:31-32: ""Foi dito: ‘Aquele que se divorciar de sua mulher deverá dar-lhe certidão de divórcio’. Mas eu lhes digo que todo aquele que se divorciar de sua mulher, exceto por imoralidade sexual, faz que ela se torne adúltera, e quem se casar com a mulher divorciada estará cometendo adultério"."
- Mateus 19:3-9: "Alguns fariseus aproximaram-se dele para pô-lo à prova. E perguntaram-lhe: "É permitido ao homem divorciar-se de sua mulher por qualquer motivo? " Ele respondeu: "Vocês não leram que, no princípio, o Criador ‘os fez homem e mulher’ e disse: ‘Por essa razão, o homem deixará pai e mãe e se unirá à sua mulher, e os dois se tornarão uma só carne’? Assim, eles já não são dois, mas sim uma só carne. Portanto, o que Deus uniu, ninguém o separe". Perguntaram eles: "Então, por que Moisés mandou dar uma certidão de divórcio à mulher e mandá-la embora? " Jesus respondeu: "Moisés lhes permitiu divorciar-se de suas mulheres por causa da dureza de coração de vocês. Mas não foi assim desde o princípio. Eu lhes digo que todo aquele que se divorciar de sua mulher, exceto por imoralidade sexual, e se casar com outra mulher, estará cometendo adultério"."
- Marcos 10:2-12: "Alguns fariseus aproximaram-se dele para pô-lo à prova, perguntando: "É permitido ao homem divorciar-se de sua mulher?" "O que Moisés lhes ordenou? ", perguntou ele. Eles disseram: "Moisés permitiu que o homem desse uma certidão de divórcio e a mandasse embora". Respondeu Jesus: "Moisés escreveu essa lei por causa da dureza de coração de vocês. Mas no princípio da criação Deus ‘os fez homem e mulher’. ‘Por esta razão, o homem deixará pai e mãe e se unirá à sua mulher, e os dois se tornarão uma só carne’. Assim, eles já não são dois, mas sim uma só carne. Portanto, o que Deus uniu, ninguém o separe". Quando estava em casa novamente, os discípulos interrogaram Jesus sobre o mesmo assunto. Ele respondeu: "Todo aquele que se divorciar de sua mulher e se casar com outra mulher, estará cometendo adultério contra ela. E se ela se divorciar de seu marido e se casar com outro homem, estará cometendo adultério"."
- Lucas 16:18: ""Quem se divorciar de sua mulher e se casar com outra mulher estará cometendo adultério, e o homem que se casar com uma mulher divorciada do seu marido estará cometendo adultério"."
Nestas respostas de Jesus, encontramos alguns elementos que ajudam a construir a percepção da vontade de Deus, em relação à possibilidade de divórcio:
- Particularmente nos textos de Mateus 19:3-9 e Marcos 10:2-12, fica claro que Jesus está a responder a questões dos fariseus. Normalmente, este tipo de questões que colocavam a Jesus não se destinava a aprenderem com a sua resposta, mas a tentar fazê-lo cair em alguma contradição com a Lei ou com os seus costumes e ensinos.
- A pergunta do fariseus, apesar de constituir uma armadilha para tentar fazer Jesus cair ou contradizer-se, também tinha a finalidade de descobrir de que lado estaria Jesus, nesta matéria. Ou seja, que escola rabínica Jesus defenderia. Entre as diversas interpretações e posições sobre que motivos seriam válidos para o divórcio, os fariseus estariam também a aferir qual a "cor política" de Jesus, em relação a esta matéria.
- As respostas de Jesus aos fariseus mostram que a prática judaica era sempre no sentido do divórcio ser acionado pelo homem, como vimos anteriormente. Atendendo à falta de papel ativo da mulher e às correntes que defendiam a possibilidade de divórcio por motivos triviais, os maridos tinham um elevado poder discricionário em relação a essa possibilidade.
- O facto de que o divórcio só poderia ser acionado pelo homem e a forma como Jesus fala com os fariseu parece dar a entender que quando ele diz que o divórcio tinha sido permitido "pela dureza dos vossos corações" está a dirigir-se diretamente aos homens/maridos, embora não exclua as mulheres. Aqui, este conceito de dureza do coração não só se aplica à prática do pecado, mas acima de tudo à falta de sensibilidade para o perdão, arrependimento e reconciliação.
- As respostas de Jesus traduzem uma preocupação de defesa do casamento. A arbitrariedade com que era encarada a possibilidade de divórcio fazia diluir a sua natureza indissolúvel, tal como pretendida por Deus ("... no princípio da criação Deus ‘os fez homem e mulher’. (...) Assim, eles já não são dois, mas sim uma só carne. Portanto, o que Deus uniu, ninguém o separe"). Jesus combate a desvalorização dos laços e votos estabelecidos no casamento, ao restringir os critérios que uma boa parte dos fariseus considerava válidos para o divórcio.
- Atendendo ao poder e capacidade de decisão que o marido tinha sobre o casamento e a sua possível dissolução, bem como à total desproteção em que se encontrava uma mulher que perdia o marido (por falecimento ou fim do casamento), é perfeitamente claro que Jesus está a advogar uma necessária defesa da mulher. Assim, esta aparente restrição dos motivos válidos para o divórcio não constitui, necessariamente, uma absoluta limitação dos motivos legítimos para terminar o casamento, mas um elemento fundamental de proteção e salvaguarda da mulher.
- A preocupação de Jesus com a defesa da mulher fica ainda mais clara no texto de Marcos, onde, ao falar com os seus discípulos, vai para além do que a lei permitia e contempla a possibilidade de ser a mulher a tomar a iniciativa de acionar o divórcio. Esta afirmação de Jesus tem um caráter absolutamente revolucionário, pelo menos, para o contexto judaico. Aos que consideram que esta observação de Jesus se destinava às culturas não judaicas em que a mulher se poderia divorciar do marido, importa salientar que estas palavras foram proferidas diretamente aos seus discípulos, ao que se sabe todos eles judeus e percussores da própria igreja. Fica, mais uma vez, estabelecido que o Evangelho vem trazer redenção e transformação radicais das relações familiares, nomeadamente na equiparação de papéis e direitos masculinos e femininos.
- O motivo que Jesus defende ser o único válido para o divórcio, de forma a permitir um novo casamento, é o da imoralidade sexual ou infidelidade. Jesus usa a palavra grega "pornea", a qual em contextos variados é traduzida por infidelidade, adultério, imoralidade, prostituição, etc. A legitimidade deste motivo é facilmente compreendida, quanto atentamos para a natureza física do próprio casamento. A fórmula que define o casamento, aos olhos de Deus, é quando passam os dois a serem "uma só carne". A união sexual entre o marido e a esposa são a concretização do casamento e qualquer união sexual que um dos cônjuges estabeleça com outrem assume um carácter de contaminação e agressão da "uma só carne" em que se constituíram. Ocorre uma violação da unidade e santidade do casamento (Hebreus 13:4 - "Digno de honra entre todos seja o matrimônio, bem como o leito sem mácula; porque Deus julgará os impuros e os adúlteros.").
Perante esta restrição de Jesus, ao indicar a infidelidade como único motivo válido para o divórcio, ficamos com duas possibilidades de interpretação: 1) Interpretar estas palavras literalmente e de forma exclusiva, rejeitando todos e quaisquer outros motivos para o divórcio; 2) Compreender o contexto em que as palavras foram proferidas e analisar o sentido original que as mesmas tiveram, para aferir sobre a melhor forma de as aplicar.
- Se escolhermos uma abordagem mais literalista e defendermos que somente alguma forma de infidelidade sexual constitui base válida para um divórcio e possibilidade de novo casamento, encontraremos algumas dificuldades, entre as quais se podem destacar as seguintes:
- Será necessário mantermos essa mesma linha interpretativa literal em outros textos relacionados e retirar as necessários conclusões. Por exemplo, no texto de Mateus 5:28, Jesus afirma: "Mas eu lhes digo: qualquer que olhar para uma mulher para desejá-la, já cometeu adultério com ela no seu coração.". Assim sendo, praticamente qualquer esposa, à face do planeta, pode alegar este motivo para divorciar-se, atendendo à facilidade com que os homens tendem a cair nesta forma de infidelidade.
- Por outro lado, nos momentos em que Jesus se dirige aos fariseus ou ao público em geral, a sua referência é sempre em relação à decisão masculina de terminar o casamento, devido ao pecado de infidelidade da esposa. Portanto, do ponto de vista literal, fica até difícil considerar a situação inversa: da esposa terminar o casamento por infidelidade do marido.
- Além disso, será virtualmente impossível harmonizar esta instrução de Jesus com a permissão que Paulo introduz, mais tarde, ao referir-se às situações em que o cônjuge não crente abandona o cônjuge crente, considerando esta circunstância com plenamente válida para justificar o divórcio e novo casamento.
- Se, em vez disso, procurarmos entender o contexto em que as palavras de Jesus ocorrem e o seu verdadeiro sentido, poderemos evitar conclusões absurdas como a primeira do ponto anterior e compreender o que de facto estava em causa. Em grande medida, pelo que foi acima exposto, as palavras de Jesus constituem uma salvaguarda da mulher e das suas condições de subsistência. Defender que situações de violência doméstica, abandono, negligência e outras formas de agressão para com a mulher não constituem base válida para o divórcio e possível novo casamento, com base nestas palavras de Jesus, é usar um texto que se destina a defender a mulher e usá-lo para a agredir, subjugá-la e mantê-la em situações de manifesta opressão e indignidade. Esta forma legalista de interpretar e aplicar a Bíblia, além de redundar em contradições interpretativas, resulta em situações de absoluta violação dos direitos humanos mais básicos, expressos e defendidos pelo próprio Evangelho.
No que diz respeito aos motivos válidos para acionar o divórcio, é necessário considerar o contexto e sentido das palavras de Jesus, ao referir-se somente às situações de infidelidade.
- Em primeiro lugar, importa referir que, mesmo nas situações de infidelidade, é possível ultrapassar a dureza dos nossos corações e permitir que o Espírito de Deus nos capacite a exercer o arrependimento e o perdão que permitam a reconciliação. Ou seja, a infidelidade não tem que resultar, necessariamente, numa absoluta inviabilização da relação matrimonial, caso seja possível a reconciliação.
- Em segundo lugar, a assimetria de que enfermavam os casamentos no tempo e cultura de Jesus (discutidas neste artigo: https://vidaemabundancia.blogspot.com/2024/03/o-vaso-mais-fraco.html) tornava a dinâmica do casal absolutamente desequilibrada e unidirecional. Situações como a violência doméstica, o abuso físico, emocional ou psicológico ou outro tipo de agressões nunca eram sequer consideradas como motivos para um eventual divórcio, pela simples razão de que a mulher era, habitualmente, a vítima e não tinha sequer a possibilidade de o acionar.
- Em terceiro lugar, atendendo ao ponto anterior, Jesus não está, necessariamente, a excluir outros motivos sérios e graves como legítimos para o divórcio, mas sim a limitar a discricionariedade de que gozavam os maridos sobre essa possibilidade. Ou seja, trata-se de uma restrição necessária perante o contexto de banalização dos motivos considerados válidos para terminar um casamento. Não constitui, necessariamente, uma proibição do divórcio perante outras circunstâncias igualmente graves e violadoras dos compromissos matrimoniais.
Na realidade, quando Jesus proferiu as palavras acima transcritas, particularmente aos fariseus e ao público em geral, não estava, sequer, a elaborar uma teologia sistemática e exaustiva em relação ao tema do divórcio. Se tivesse sido esse o seu propósito, então, de facto, só existiria um único motivo objetivamente legítimo para considerar a possibilidade de divórcio, o qual seria a infidelidade. Uma boa evidência de que o seu propósito não é fazer uma explanação exaustiva sobre o divórcio é o facto de se ter referido à possibilidade da mulher também se divorciar do marido, em privado, com os seus discípulos. Caso Jesus tivesse o propósito de expor a sua teologia completa sobre o assunto, teria mencionado este importante aspecto, perante o público em geral e, particularmente, perante os fariseus. Ou seja, mediante esta declaração partilhada com os seus discípulos, percebe-se claramente que o ensino de Jesus em relação ao divórcio não se limita ao partilhado publicamente. E, assim sendo, não é legítimo concluir que a finalidade de Jesus era negar todo e qualquer outro motivo para o legítimo divórcio, a não ser o da infidelidade. Em bom rigor, o que Jesus combate são os motivos banais, insignificantes e de pouca importância, que os homens judeus usavam a seu bel-prazer, para terminar casamentos. E, no fundo, é esta mesma atitude que temos que combater, hoje em dia.
Paulo
Paulo não se refere explicitamente aos motivos que considerava válidos para o divórcio, de forma sistematizada. O seu pressuposto também é que, idealmente, o casamento deve ser sempre salvaguardado e ambos os cônjuges são responsáveis por fazer os necessários esforços e ajustamentos, em função do mesmo. Esta lógica encontra-se em harmonia com os textos de Jesus e não só, no sentido de proteger a santidade e indissolubilidade da união matrimonial.
Em I Coríntios 7:10-13, encontramos exortações a permanecer casado: "Todavia, aos casados mando, não eu mas o Senhor, que a mulher não se aparte do marido. Se, porém, se apartar, que fique sem casar, ou que se reconcilie com o marido; e que o marido não deixe a mulher. Mas aos outros digo eu, não o Senhor: Se algum irmão tem mulher descrente, e ela consente em habitar com ele, não a deixe. E se alguma mulher tem marido descrente, e ele consente em habitar com ela, não o deixe." O pressuposto de Paulo é que a relação matrimonial deve ser mantida ou, nos casos em que seja quebrada, deve promover-se a reconciliação. Salienta-se aqui, porém, um elemento interessante e novo, em relação à prática do Antigo Testamento e ao contexto judaico, que é a possibilidade da mulher se separar do marido, conforme Jesus também já tinha referido, aos seus discípulos. O texto de Paulo está construído de tal forma que tanto o marido como a esposa gozam de iguais direitos, nomeadamente no que diz respeito à possibilidade de terminar o casamento. Este tipo de avanço pode parecer insignificante, aos olhos do leitor ocidental, do século XXI, mas é absolutamente transformador para a época em que foi escrito. Esta é uma parte da redenção que o Evangelho traz aos relacionamentos, nomeadamente entre os cônjuges: equiparação, equivalência, igualdade.
O texto de I Coríntios 7:10-13 surge na sequência da argumentação que Paulo faz em I Coríntios 7:1-9: "Ora, quanto às coisas que me escrevestes, bom seria que o homem não tocasse em mulher; Mas, por causa da fornicação, cada um tenha a sua própria mulher, e cada uma tenha o seu próprio marido. O marido pague à mulher a devida benevolência, e da mesma sorte a mulher ao marido. A mulher não tem poder sobre o seu próprio corpo, mas tem-no o marido; e também da mesma maneira o marido não tem poder sobre o seu próprio corpo, mas tem-no a mulher. Não vos priveis um ao outro, senão por consentimento mútuo por algum tempo, para vos aplicardes ao jejum e à oração; e depois ajuntai-vos outra vez, para que Satanás não vos tente pela vossa incontinência. Digo, porém, isto como que por permissão e não por mandamento. Porque quereria que todos os homens fossem como eu mesmo; mas cada um tem de Deus o seu próprio dom, um de uma maneira e outro de outra. Digo, porém, aos solteiros e às viúvas, que lhes é bom se ficarem como eu. Mas, se não podem conter-se, casem-se. Porque é melhor casar do que abrasar-se." Esta parte da carta é uma resposta a questões que os Coríntios haviam colocado a Paulo, relativamente ao casamento. Não temos conhecimento exato de que questões teriam sido essas. Mas, pelas respostas que Paulo dá, parece que podemos concluir que algumas das questões seriam sobre o relacionamento sexual, dentro do casamento. Para além de defender que não procurassem mudar o seu estado (quem estava casado deveria assim permanecer e quem não estivesse casado também não deveria procurar alterar essa situação), Paulo fala sobre a responsabilidade do cônjuge em não negar ao outro a relação sexual, numa dinâmica claramente igualitária. Ele defende também que a intimidade sexual, no contexto do casamento, funcionava como antídoto para a imoralidade sexual (pornea).
Se Paulo exorta a que nenhum dos cônjuges se negue ao outro e reforça essa exortação dizendo que o corpo de cada um não lhe pertence, mas sim ao outro (reciprocidade), é provável que as questões que lhe colocaram tivessem a ver com situações de incompatibilidade sexual dentro dos casais da igreja. Se o versículo 12, no qual diz "mas, aos outros" for uma indicação de que vai referir-se aos que são casados com descrentes, como parece ser o caso, então, até ao versículo 10, Paulo deverá estar a falar para os casais em que ambos são crentes em Jesus. A sua exortação, no versículo 10 é para que não se separem. No entanto, nesse mesmo versículo, ele abre essa possibilidade quando diz "se, porém, se apartar". Ou seja, Paulo está aqui a admitir uma situação de separação em que o motivo parece ser o da incompatibilidade sexual. Nesta situação, porém, indica que não deveria haver um novo casamento. Em vez disso, a mulher deveria ficar sem casar ou então reconciliar-se com o marido. Deve compreender-se que este motivo para a separação, apesar de sério por residir no próprio cerne da união dos "dois numa só carne", não equivale, em gravidade, às situações de infidelidade ou violência, nas suas mais variadas vertentes. Paulo aponta para uma reconciliação, provavelmente por admitir que uma reaprendizagem mútua da intimidade do casal será um caminho viável. Este ponto de vista é alimentado pela ideia de que as incompatibilidades não serão sempre de natureza irreconciliável, devendo ambos os cônjuges envidar todos os esforços no sentido de as ultrapassarem.
Em I Coríntios 7:12-15, Paulo introduz um novo motivo válido para o divórcio, perante o qual a pessoa deixa de estar "sujeita à servidão": "Mas aos outros digo eu, não o Senhor: Se algum irmão tem mulher descrente, e ela consente em habitar com ele, não a deixe. E se alguma mulher tem marido descrente, e ele consente em habitar com ela, não o deixe. Porque o marido descrente é santificado pela mulher; e a mulher descrente é santificada pelo marido; de outra sorte os vossos filhos seriam imundos; mas agora são santos. Mas, se o descrente se apartar, aparte-se; porque neste caso o irmão, ou irmã, não está sujeito à servidão; mas Deus chamou-nos para a paz." Este motivo é o do abandono, por parte do cônjuge não crente.[10] A palavra usada por Paulo para se referir a "servidão" (I Coríntios 7:15) é o termo grego "dedoulotai" que tem a sua raiz no termo "doulos" (servo) e pode ser traduzido como "escravizada, subjugada, submissa, sujeita, dominada". Em I Coríntios 7:39 e em Romanos 7:2, Paulo refere que a esposa encontrava-se ligada ao marido, enquanto este vivesse: "A mulher casada está ligada todo o tempo que o seu marido vive; mas, se falecer o seu marido fica livre para casar com quem quiser, contanto que seja no Senhor." e "Porque a mulher que está sujeita ao marido, enquanto ele viver, está-lhe ligada pela lei; mas, morto o marido, está livre da lei do marido.", respetivamente. O termo usado para identificar essa "ligação" é "dédetai" que pode ser traduzido como "amarrada, atada, presa, vinculada, condicionada". Apesar de "dedoulotai" e "dédetai" não se relacionarem etimologicamente, por terem raízes diferentes, do ponto de vista semântico, têm uma elevada proximidade:
"Ambos os verbos tratam de restrição e perda de liberdade:
- Dedetai refere-se ao ato de estar amarrado ou preso, seja literalmente (como por cordas) ou metaforicamente (como por obrigações).
- Dedoulotai refere-se à escravização ou subjugação, enfatizando uma condição em que a pessoa é privada de sua liberdade e direitos.
Portanto, apesar de não haver uma raiz comum, as duas palavras refletem o conceito de limitação de liberdade e controle, seja pelo ato de amarrar ou de escravizar."[11]
Desta forma, quando Paulo refere que o irmão ou irmã deixa de estar sujeito à servidão, é legítimo considerar que se refere à cessação da ligação existente entre os cônjuges, ao abrigo da Lei. Apesar do Antigo Testamento não referir expressamente a existência desta "ligação", que só seria quebrada com a morte de um dos cônjuges, é razoável considerar que a natureza da união dos "dois numa só carne" e o carácter subentendido de uma aliança duradoura (Malaquias 2:14 - "E dizeis: Por quê? Porque o Senhor foi testemunha entre ti e a mulher da tua mocidade, com a qual tu foste desleal, sendo ela a tua companheira, e a mulher da tua aliança.)" tenham levado Paulo a referir-se à "lei", possivelmente, como sendo a do Antigo Testamento. Assim acontece com a maioria das suas referências à "Lei". O termo "lei" também pode surgir como uma conjugação da Lei do Antigo Testamento com as palavra de Jesus, acima citadas, em relação aos motivos válidos para o casamento. No entanto, conforme anteriormente referido, tal pode não ser o caso. Quando Paulo se refere à Lei do Antigo Testamento, habitualmente, utiliza o artigo definido "a Lei", o que não acontece no original da primeira ocorrência deste termo, em Romanos 7:2. Ou seja, em vez da tradução "ligada pela lei", seria mais correta a tradução "ligada por lei". Apesar de parecer uma subtileza menor, pode indiciar que Paulo não se estaria a referir à "Lei" do Antigo Testamento, mas à "lei" civil que vigorava, no contexto e cultura dos seus leitores originais. Se esta segunda opção estiver correta, não só fica diluída a força "legal" desta ligação, por se tratar de um elemento circunstancial, como também é possível perceber uma preocupação de adequação da vivência da igreja, nesta matéria, ao considerado social e culturalmente relevante.
Independentemente da "lei" a que Paulo se refere, a ideia do cônjuge ficar livre da sujeição ou servidão, quando é abandonado pelo outro, permite assumir que este motivo era considerado como válido para não só legitimar a cessação do casamento, como permitir um novo casamento. A expressão indica o fim, decidido unilateralmente, de uma ligação de compromisso, intimidade e responsabilidades que existia entre ambos. Desta forma, com o abandono de um dos cônjuges, fica quebrada a ligação que os unia. Por outras palavras, os votos e deveres matrimoniais deixam de ser honrados, por parte de um dos cônjuges, libertando o outro. A partir deste princípio, é possível defender que outros comportamentos igualmente destruidores dos laços matrimoniais possam constituir base legítima para o divórcio e para a possibilidade de um casamento seguinte. Ou seja, embora a Bíblia não o diga expressamente, o princípio aqui contido pode aplicar-se legitimamente a situações em que um dos cônjuges desonra e macula o seu compromisso, para com o outro. Situações de agressões físicas e não só, degradantes da dignidade humana e diminuidoras do valor do outro estão amplamente abrangidas por este princípio, na medida em que constituem violações graves da relação de confiança e segurança que deve constituir o casamento. Importa referir que, ao lermos o texto de Paulo, percebemos que ele está a referir-se ao abandono físico e material. Mas, o que dizer em relação ao abandono emocional, à negligência da intimidade física (um dos teores mais prováveis das questões levantadas pelos Coríntios), ao desprezo, à indiferença, ao menosprezo, ao desapego? Não serão estes comportamentos outras formas de abandono, com efeitos igualmente nefastos? Não serão também, de certa forma, agressões, mais ou menos dissimuladas?
Poderão argumentar que, assim, fica difícil estabelecer limites claros sobre o que constitui real e efetiva violação ou quebra dos votos matrimoniais. Na realidade, para pessoas diferentes, estes limites poderão estar em momentos ou circunstâncias diferentes. Não há como concretizar e delimitar as situações passíveis de serem consideradas biblicamente legítimas para o divórcio, sem cair em situações de legalismo que, mais cedo ou mais tarde, redundarão em contradições, incoerências e injustiças. Há, portanto, que se usar sabedoria, sensibilidade e compreensão, em especial para com a parte que se percebe ser a mais lesada. Não deixa, assim, de ser absolutamente fundamental lembrar o que Paulo refere no final do versículo 15, ao dizer: "Mas, Deus chamou-nos para a paz." Esta expressão de Paulo permite concluir que um casamento em que a paz é perturbada e agredida de forma reiterada, não é um ambiente para o qual Deus nos chama.
Outros poderão defender, com base em I Pedro 3:1 ("Semelhantemente, vós, mulheres, sede sujeitas aos vossos próprios maridos; para que também, se alguns não obedecem à palavra, pelo porte de suas mulheres sejam ganhos sem palavra;"), que deixar o casamento por motivos referidos nos últimos parágrafos não é legítimo, porque o cônjuge (habitualmente, a esposa) deve permanecer na relação, para procurar "ganhar" o outro cônjuge para Deus. Em primeiro lugar, importa esclarecer que em nenhum lugar do texto de Pedro, nem nas suas imediações, se encontra a mínima referência à mulher ter de se sujeitar a situações de agressão e violência. Não é esse o contexto da orientação de Pedro, nem é esse o contexto de qualquer orientação bíblica, relativa ao casamento. Em segundo lugar, é necessário destacar que o próprio Paulo admite o fim do casamento em situações de incompatibilidade religiosa (quando o não crente abandona o casamento), também por não existirem garantias de que o descrente venha a converte-se: "Porque, de onde sabes, ó mulher, se salvarás teu marido? ou, de onde sabes, ó marido, se salvarás tua mulher?" (I Coríntios 7:16).
Por um lado, não existem instruções bíblicas literalmente explicitas para que um divórcio seja considerado legítimo, nas situações de agressão e violência. Esta ausência, como se referiu atrás, acontece, em grande medida, em resultado do peso que o contexto sociocultural tem sobre a linguagem do registo bíblico. O princípio do abandono, aqui referido por Paulo, dá margem suficiente para considerar a legitimidade destes motivos. Ou seja, não está explícito, mas está implícito. Por outro lado, feita a correta interpretação de todos os textos bíblicos sobre a matéria, nem explícita, nem implicitamente, existe qualquer instrução ou princípio bíblico que obrigue uma mulher (ou homem) a permanecer ligado a um cônjuge abusivo, agressivo e violento. O princípio da paz, referido em I Coríntios 7:15, é suficiente para concluir que o exato contrário é que é verdadeiro.
Motivos
Com base no que acima ficou exposto, podemos considerar que a Bíblia refere explicitamente dois motivos válidos para o divórcio: infidelidade sexual e abandono por um dos cônjuges. O pressuposto em ambos os motivos parece ser o facto da ligação entre os cônjuges ficar de tal modo danificada ou inviabilizada que Deus permite uma legítima cessação da mesma, abrindo a possibilidade de um novo casamento. Partindo desse pressuposto e considerando o que acima foi discutido, é possível considerar a legitimidade de outros motivos igualmente destrutivos, como sejam a violência doméstica, em todas as suas vertentes, e um conjunto de situações de abandono ou negligência física, material, emocional ou afetiva.
Importa reforçar que, em todas estas situações, o amor de Deus pode capacitar a reconciliação, através do genuíno arrependimento e perdão. Como facilmente se compreende, não serão situações fáceis, mas podem ser vistas como possíveis. A restauração do relacionamento deve ser sempre a primeira hipótese. Ou seja, apesar de podermos considerar um maior leque de motivos válidos para o divórcio do que os que são explicitamente referidos na Bíblia, tal não pode redundar numa banalização do divórcio, nem na trivialização dos votos e laços matrimoniais. A redenção deve ser sempre um cenário a considerar, em primeiro lugar. Nos casos em que tal não seja possível, o divórcio ou a separação poderão ser a única solução viável.
Para além de I Coríntios 7:12-15, que explicita o abandono de um dos cônjuges como motivo válido para o divórcio e estabelece o princípio da paz, para a vivência do casal, existem outros textos bíblicos que definem normas igualmente aplicáveis à vida matrimonial. Estes textos consubstanciam base bíblica suficiente para admitir a legitimidade do divórcio em situações para além das literalmente explícitas.
Êxodo 21:10-11: "Se o senhor tomar uma segunda mulher, não poderá privar a primeira de alimento, de roupas e dos direitos conjugais. Se não lhe garantir essas três coisas, ela poderá ir embora sem precisar pagar nada." Apesar deste texto surgir num contexto em que era praticada a escravatura e referir-se a um senhor que casou com uma escrava, é importante observar o princípio que o subjaz. Existe aqui uma clara preocupação com a proteção da vida e dignidade da mulher, enquanto cônjuge. O texto determina que, mesmo que o senhor casasse com uma segunda mulher, não deveria diminuir o cuidado e atenção para com a primeira. As suas necessidades de alimento, vestuário e intimidade física deveriam continuar a ser completamente salvaguardadas, sob pena dela poder sair desse casamento livremente (apesar de, inicialmente, ter sido uma serva). O facto do texto não incluir qualquer admoestação ou restrição em relação à mulher que saísse do casamento, nestas circunstâncias, permite assumir a legitimidade da separação, condição necessária e suficiente para a possibilidade de um posterior novo casamento. Salienta-se também que está implícito um elemento de iniciativa feminina nesta cessação da relação marital. No fundo, a expressão "ela poderá ir embora" evidencia que não é o marido a tomar a iniciativa do desligamento, mas ela própria. No fundo, ela vai-se embora, devido ao "abandono" ou negligência do marido, no que respeita à satisfação das suas necessidades e legítimas expectativas. Este texto fornece base bíblica para expandir o princípio do abandono defendido por Paulo em I Coríntios 7:15, para além do abandono físico. Ou seja, de acordo com esta passagem, apesar do marido continuar fisicamente presente, abandonou a esposa, negligenciando-a. A liberdade com que ela pode, então, sair desta ligação é equiparada à expressão usada por Paulo: "não está sujeito à servidão".
Malaquias 2:16: "Porque o Senhor, o Deus de Israel, diz que odeia o divórcio e também aquele que cobre de violência as suas roupas, diz o Senhor dos Exércitos. Portanto, tenham cuidado e não sejam infiéis.". Embora este texto não seja completamente claro no que diz respeito à expressão de cobrir as suas roupas com violência, fica explícito o ódio divino quanto à prática do divórcio. Esta declaração harmoniza-se, por exemplo, com a forma como Jesus combate a vulgarização do divórcio, invariavelmente por iniciativa masculina, protegendo a mulher. Malaquias também parece condenar a prática corrente de "descartar" a esposa, para, eventualmente, casar com outra que fosse mais do agrado do homem. Pelo texto, parece que, de alguma forma, esta prática está associada à violência. Alguns comentadores creem que a referência às roupas era uma forma simbólica de se referir à esposa[12]. Se assim for, o ódio de Deus também recai sobre aquele que cobre de violência da sua própria esposa. Este ato de "cobrir de violência" pode ser uma referência ao ato de a repudiar, mas também pode ser uma descrição do comportamento violento e agressivo do marido, para com a sua esposa, durante o tempo em que estão casados. Embora este texto não forneça elementos para aferir sobre motivos válidos para o divórcio, ao equiparar o ódio de Deus para com o divórcio com o que Ele também tem para com a violência no contexto do casamento, verifica-se a clara desaprovação divina de ambas as situações. Não é, portanto, da vontade de Deus que as relações matrimoniais sejam mantidas em contextos de violência, insegurança, falta de confiança e medo.
Efésios 5:25, 28-29: "Maridos, que cada um de vocês ame a sua esposa, como também Cristo amou a igreja e se entregou por ela, (...) Assim também o marido deve amar a sua esposa como ama o próprio corpo. Quem ama a esposa ama a si mesmo. Porque ninguém jamais odiou o seu próprio corpo. Ao contrário, o alimenta e cuida dele, como também Cristo faz com a igreja;". Embora este texto não se refira ao divórcio ou separação, nem a motivos considerados válidos para o mesmo, deixa bem claro o elevado nível de exigência e responsabilidade do marido, para com a sua esposa. Este texto coloca a expectativa de amor e a sua correspondente demonstração, do marido, em pé de igualdade com a forma como Cristo amou a igreja. Embora se compreenda que esta é uma expectativa inalcançável, em virtude da perfeição com que Cristo amou a igreja, não deixa de ser legítimo exigir que seja esse, pelo menos, o alvo de todo o marido. O texto não apresenta esta expectativa como sendo algo opcional ou facultativo. Em vez disso, exige do marido que essa seja a norma. É, portanto, natural concluir que este princípio maior do amor está na própria essência da relação matrimonial. Violá-lo é agredir a relação e atentar contra a própria natureza do casamento. Importa ressalvar que não é justificação legítima para terminar o casamento o facto de não ser atingido o nível de perfeição de amor, conforme Cristo o viveu. No entanto, a reiterada e ostensiva negligência desde princípio acaba por consubstanciar, no mínimo, uma indiferença grosseira, enquadrando-se no âmbito do abandono de que Paulo fala.
No fundo, o divórcio ou a separação não são propriamente o fim do casamento. O divórcio é meramente uma oficialização que concretiza o facto de que, na sua essência, esse casamento já acabou. A discussão que nos interessa, no âmbito deste artigo, é a que nos permite identificar as circunstâncias biblicamente legítimas para, depois do divórcio ou separação, ser permitida a possibilidade de um novo casamento.
Novo casamento
A regra geral, do ponto de vista bíblico, é que o casamento entre um homem e uma mulher é uma aliança estabelecida, entre ambos, para toda a vida. Entendemos esta norma, por exemplo, nas palavras de Malaquias ("Pois eu odeio o divórcio”, diz o Senhor, o Deus de Israel." - Malaquias 2:16), nas de Jesus ("Portanto, o que Deus ajuntou não o separe o homem." - Mateus 19:6) e nas de Paulo ("A mulher está ligada ao marido enquanto ele viver." - I Coríntios 7:39). É, portanto, biblicamente impossível chegar à conclusão que, originalmente, o casamento não tenha tido uma natureza definitiva, terminando somente com o falecimento de um dos cônjuges. Todavia, como vimos acima, uma série de outras circunstâncias pode ditar uma cessação prematura dessa ligação e fazer terminar o vínculo entre ambos. As considerações tecidas no ponto anterior, sobre o divórcio e separação, dão a entender em que circunstâncias a Bíblia considera a possibilidade de um novo casamento, após o divórcio. De facto, a discussão sobre a legitimidade bíblica de um segundo casamento é, em grande medida, uma discussão sobre as causas consideradas biblicamente válidas para o divórcio, no sentido de se considerar a tal "ligação" entre os cônjuges como terminada.
Para o crente, assim, é possível assumir uma nova relação matrimonial nas situações de fim de casamento em consequência de infidelidade, abandono, violência, negligência e qualquer outra situação que coloque em causa a santidade e inviolabilidade da união entre os cônjuges. Um dos textos que, de forma mais consistente, abre esta possibilidade encontra-se, como vimos anteriormente, em I Coríntios 7:15: "Mas, se o descrente se apartar, aparte-se; porque neste caso o irmão, ou irmã, não está sujeito à servidão; mas Deus chamou-nos para a paz." Este texto não só abre o leque de situações consideradas legítimas para um divórcio, ao referir-se ao abandono e à salvaguarda da paz, como permite perspectivar a possibilidade de um novo casamento, ao indicar que a pessoa deixa de estar "sujeita à servidão". Por outro lado, um novo casamento, após divórcio ou separação, que não tenha ocorrido pelas razões apontadas acima, resultará numa situação de não conformidade com a vontade de Deus.
Será então, por exemplo, que um recém-convertido que se tenha divorciado por motivos biblicamente inválidos, antes da sua conversão, não poderá voltar a casar, sob pena de entrar numa situação de pecado? Existem diversas linhas doutrinárias que defendem que, numa situação destas, o novo crente não deve voltar a casar, por ainda se encontrar ligado ao cônjuge anterior. Uns defendem que deverá procurar uma restauração do relacionamento, quando possível, e outros afirmam que nunca poderá voltar a casar-se, enquanto o anterior cônjuge for vivo. Sem prejuízo de admitir que a restauração de relacionamentos poderá ser sempre um cenário redentor a considerar, esta posição legalista falha em não conceder uma nova oportunidade a quem poderá ter errado, ainda antes de ser crente, o que não se coaduna com os valores do Evangelho. Em primeiro lugar, devemos considerar que o recém-convertido, como a própria designação indica, teve uma transformação recente na sua vida (conversão), mediante a qual a sua ordem de valores é redimida (ou começou a sê-lo). Assim, uma vez que não pode voltar ao passado e mudar as suas decisões ou escolhas passadas, é possível admitir que o poder redentor do Evangelho o restaure à possibilidade de um novo casamento. Em segundo lugar, apesar do texto de Atos 17:30 não ser acerca do casamento, divórcio ou segundo casamento, lança um princípio de novas oportunidades, perante o arrependimento: "Mas Deus, não tendo em conta os tempos da ignorância, anuncia agora a todos os homens, e em todo o lugar, que se arrependam;". O facto de Deus não levar em conta o tempo da nossa ignorância (entenda-se: o tempo anterior a tomarmos conhecimento pessoal do Evangelho) não significa que elimine os nossos atos anteriores e respectivas consequências. Mas, certamente, significa que o seu poder redentor nos dá novas oportunidades, apesar dos erros anteriores, perante o nosso arrependimento.
A possibilidade de novo casamento é, no entanto, limitada por Paulo, em I Coríntios 7:39, a casamentos "no Senhor", significando que o crente deverá assumir uma nova relação matrimonial com outra pessoa de igual fé, isto é, crente em Jesus: "A mulher casada está ligada pela lei todo o tempo que o seu marido vive; mas, se falecer o seu marido fica livre para casar com quem quiser, contanto que seja no Senhor." Este princípio harmoniza-se com o texto de I Coríntios 6 :14 "Não vos prendais a um jugo desigual com os infiéis; porque, que sociedade tem a justiça com a injustiça? E que comunhão tem a luz com as trevas?", o qual apesar de não ser exclusivo da relação matrimonial, aplica-se-lhe com facilidade. A possibilidade de aplicação deste texto ao casamento resulta não só do paralelo entre os termos "jugo" e "servidão" (I Coríntios 5:17), mas também devido à união matrimonial ser a ligação mais profunda existente entre dois seres humanos. Esta preocupação de Paulo é compreendida perante o elevado nível de intimidade e comunhão que deve ser vivido pelo casal. Assim, é expectável que a natureza espiritual dos dois seja a mesma, permitindo o esperado e necessário aprofundamento da ligação entre ambos. Como facilmente se compreende, este critério de se casar "no Senhor" não se aplica somente à possibilidade de um novo casamento, mas também a um casamento inicial.
A admissão da legitimidade de um novo casamento não pode servir como instrumento de banalização da união matrimonial. Ou seja, não devemos permitir que o casamento seja visto como uma instituição descartável ou limitada no tempo. A lógica comum atual de considerar que "vamos ver se dá certo e, se não der, acaba-se e tenta-se novamente" dilui a essência permanente da união entre um homem e uma mulher. Esta forma de pensar não honra o registo bíblico e não deve ser encorajada. No entanto, quando efetivamente a união dos "dois numa só carne" é comprometida, pelos motivos acima discutidos, e não é possível a restauração e reconciliação, importa ler para além da letra da lei e encontrar, no espírito da mesma, aos princípios eternos da Graça e Misericórdia de Deus, que contemplam segundas oportunidades.
Conclusão
De acordo com o registo bíblico, o casamento acontece quando um homem e uma mulher se unem fisicamente, através do ato sexual, tornando-se os "dois numa só carne". Perante Deus, um homem e uma mulher que se unem, dessa forma, encontram-se casados. Do ponto de vista social, faz sentido que tornem a sua união conhecida. Do ponto de vista legal, têm a possibilidade de formalizar a união, em registo civil. A conformidade com as leis do país contribui para salvaguardar os direitos de ambos e, para os crentes, é uma forma de reforçar o seu testemunho. A igreja pode participar da vida do casal, não só pedindo a bênção de Deus para ambos, como servindo de apoio, ao longo da sua vida. Não lhe compete, no entanto, oficiar , realizar ou legitimar o casamento.
Apesar de não ser parte integrante dos planos originais de Deus, o divórcio ou a separação é uma permissão, para as situações em que a união do casal é comprometida ou violada, por circunstâncias de infidelidade, abandono, violência ou negligência, nas suas variadas formas. Apesar da perspectiva divina ser sempre a de dar prioridade à restauração, mediante o arrependimento e perdão, nas situações em que tal não venha a ser possível, é permitido o divórcio ou a separação. Nestas circunstâncias, a Bíblia permite não só a dissolução da ligação entre marido e esposa, como contempla a possibilidade de um novo casamento.
Assiste à igreja a responsabilidade de se distanciar das posturas tradicionalistas e legalistas que, em vez de estenderem os benefícios da Graça e Misericórdia de Deus, trazem opressão, medo e subjugação. O regresso aos padrões simples e básicos das Escrituras, obtidos mediante a sua interpretação devidamente contextualizada, imparcial e objetiva, é o melhor caminho para restaurar a visão bíblica sobre a união matrimonial. A única regra de fé e prática começará a ser a Bíblia, quando a igreja aceitar a tarefa de se libertar dos pesos e grilhões que a tradição lhe tem prendido, ao longo dos tempos, em relação a este e outros temas.
[2] NAS Exhaustive Concordance; https://biblehub.com/hebrew/935.htm
[3] "ChatGPT." Resposta sobre o início dos casamentos religiosos na Igreja Cristã. 17 outubro de 2024, https://chat.openai.com/. Acessado em 17 de outubro de 2024.
[4] "ChatGPT." Resposta sobre o início dos casamentos religiosos na Igreja Cristã. 17 outubro de 2024, https://chat.openai.com/. Acessado em 17 de outubro de 2024.
[5] "ChatGPT." Resposta sobre o início dos casamentos religiosos na Igreja Cristã. 17 outubro de 2024, https://chat.openai.com/. Acessado em 17 de outubro de 2024.
[6] "O Sermão sobre o Matrimônio" (1519) e "A Captividade Babilônica da Igreja" (1520)
[7] "Institutas da Religião Cristã" (1536), Livro IV, Capítulo 19.
[8] Lei n.º 7/2001, de 11 de maio; publicada no Diário da República n.º 109/2001, Série I-A de 2001-05-11, páginas 2797 - 2798
[9] Para uma discussão sobre os textos do Antigo Testamento que abordam a possibilidade de divórcio, ver ChatGPT, resposta a pergunta sobre divórcio no Antigo Testamento, 9 de outubro de 2024.
[11] OPENAI. Relação etimológica entre "dedetai" e "dedoulotai". ChatGPT. 11 out. 2024. Disponível em: https://chat.openai.com. Acesso em: 11 de outubro de 2024.
[12] Ellicott's Commentary for English Readers; Benson Commentary; Jamieson-Fausset-Brown Bible Commentary: https://biblehub.com/commentaries/malachi/2-16.htm
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