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Traduções e Tradições

Compreender o que a Bíblia, de facto, diz é fundamental para o cristão que quer viver a sua vida de acordo com a Palavra de Deus. Ciências como a Exegese (análise crítica e detalhada de um texto para entender seu significado, contexto histórico, cultural e linguístico) e a Hermenêutica (interpretação e compreensão de textos, particularmente em relação a sua aplicação a contextos específicos) são de valor inestimável para essa tarefa. A distância cronológica e cultural que nos separa dos escritores bíblicos confere a esta tarefa um elevado grau de complexidade e dificuldade. Mas, só depois de passar por esse processo interpretativo é possível chegar a alguma conclusão sobre os valores e princípios que são eternos e que podem e devem aplicar-se ainda hoje, à vida do cristão moderno. 

O cristão comum tem ao seu alcance um cada vez maior acervo de recursos que lhe permitem aprofundar o estudo bíblico e, assim, extrair o máximo de orientação divina, para a sua vida. Entre estes recursos, quase todos disponibilizados online, encontram-se léxicos, concordâncias, dicionários, comentários, textos originais (de acordo com as mais recentes descobertas e achados arqueológicos) e inúmeras versões traduzidas do texto original. É, por exemplo, de enorme utilidade para o crente a consulta de várias versões traduzidas de determinado texto, particularmente se não tiver acesso aos textos originais. A visão conjunta de várias versões (entre as mais literais e as mais expandidas ou explicativas) será de grande benefício. No entanto, nem sempre as versões lançam efetiva luz sobre o verdadeiro conteúdo original.

Tenho me deparado com uma série de traduções de textos bíblicos que, pura e simplesmente, não fazem justiça ao original. E, em muitos desses casos, nem sequer se trata de não honrar alguma nuance ou significado mais ou menos obscuro dos termos registados. Em várias situações algumas palavras são traduzidos não com o primeiro, segundo ou terceiro significado da mesma, mas com o significado menos comum e menos usual. Noutras situações, são introduzidas palavras que não estão, de todo, no texto bíblico. Alguns poderão dizer que essa é uma das fraquezas das versões mais expandidas, explicativas ou que recorrem a paráfrases. Mas tenho observado exatamente o contrário. É exatamente em algumas versões mais literais que se encontram mais destes incidentes de tradução. Em alguns casos, o incidente não ocorre numa ou noutra versão, mas encontra-se disseminado por entre a maior parte delas.

Poderão argumentar que essas situações de tradução menos conformes ao texto original se tratam de ajudas que o tradutor quis dar ao leitor, no sentido de tornar o significado do original mais claro. Mas tenho encontrado várias situações que não fazem isso. Em vez de clarificar ou ajudar o leitor e estudante da Bíblia, conduzem-no num sentido que nem é o original daquele texto, nem se harmoniza com o demais registo bíblico. Em algumas dessas situações, percebe-se que terá existido uma inclinação ou tendência por parte do tradutor. Ou seja, o tradutor permitiu que alguns dos seus pressupostos teológicos "conduzissem" a tradução (a qual, no fundo, é a primeira interpretação), muitas vezes, resultando numa inquinação da mesma. Em muitas situações, acredito que o tradutor permitiu que a tradição se sobrepusesse à tradução, não só no condicionamento desta, mas numa alimentação da daquela, para a posteridade.

Partilho aqui algumas das situações que ilustram o que refiro acima, não só para servir de alerta ao estudante bíblico, mas também como forma de estimular o espírito crítico e inquisitivo que é sempre necessário, neste tipo de tarefa. Quando Paulo nos manda examinar tudo e reter o bem, também significa que devemos abordar as traduções e versões bíblicas que nos chegam às mãos com essa mesma atitude. E não caiamos na armadilha de pensar que as antigas é que são boas. Antigas e recentes devem ser alvo do mesmo cuidado e análise crítica. Se é certo que hoje existem tendências que condicionam traduções modernas, também é certo que sempre existiram forças, pressões e condicionantes que enviesaram a leitura dos originais e modificaram a resultante tradução.

A preocupação com a literalidade da tradução entre o original e a versão traduzida não significam que devem ser descartadas, logo à partida, todas as versões que, em vez de fazerem uma tradução literal, expandem os significados e o sentido do texto ou que o parafraseiam para linguagem mais atual. Estas versões com linguagem mais moderna ou com texto mais explicativo também são extremamente importantes e úteis. Como é natural, neste tipo mais "livre" de traduções, não vamos sempre encontrar correspondência direta entre cada palavra do original com a sua contraparte traduzida. O problema a que me refiro não é esse. O problema surge quando, mesmo com as traduções mais literais, são utilizadas palavras e expressões que, não estando no original, comprometem e alteram o sentido original e desarmonizam-se com o restante registo bíblico, em especial dentro do Novo Testamento.

Embora possam ser identificadas diversas situações em que a tradução não faz justiça ao texto bíblico, para além das que enumero, estas dizem respeito essencialmente ao âmbito da liderança cristã. As imprecisões que se detectam em textos relacionados com a dinâmica dos líderes que Deus coloca na igreja são de suma importância, na medida em que contribuem para perpetuar concepções tradicionais hierarquizadas e de dominação (mais ou menos explicitas) que não são, de todo, de raiz neotestamentária. Aliás, este tipo de situações tendenciosas de traduções é particularmente preocupante, na medida em que acabam por funcionar como proteção de uma "classe" que, de certa forma, é a que se tem encarregue de promover, realizar e suportar essas mesmas traduções, ao longo dos séculos. Se não examinarmos tudo, com rigor e afinco, corremos o risco de embarcarmos numa direção que perverte o sentido original do texto e, assim, retirar-lhe a vitalidade, a relevância e a própria autoridade inspirativa divina.


I Tessalonicenses 5:12

"E rogamo-vos, irmãos, que reconheçais os que trabalham entre vós e que presidem sobre vós no Senhor, e vos admoestam" Versão Almeida Corrigida Fiel, Versão Almeida Revisada Imprensa Bíblica, Versão Almeida Revista e Corrigida, Versão Almeida Revista e Corrigida 1969.

Estas versões utilizam a expressão "presidem sobre vós", de forma indevida, uma vez que, no original, a preposição "sobre" não está presente. Trata-se de uma "falha" de tradução aparentemente inocente, mas que condiciona o pensamento e direciona-o para a percepção da liderança ser exercida "sobre" as pessoas e não "entre" ou "perante". Este tipo de linguagem alimenta a visão tradicional que considera os líderes religiosos como estando (ligeiramente) "acima" da congregação, em termos hierárquicos (explícitos ou implícitos). Esta tradução tendenciosa acaba por contribuir para a postura tradicionalista que defende a liderança cristão como sendo uma posição de autoridade.

Outras versões fazem mais justiça a este texto:

"Irmãos, honrem seus líderes na obra do Senhor. Eles trabalham arduamente entre vocês e lhes dão orientações." Versão Almeida Revista e Atualizada e Versão Nova Almeida Atualizada

"Agora lhes pedimos, irmãos, que tenham consideração para com os que se esforçam no trabalho entre vocês, que os lideram no Senhor e os aconselham." Versão Nova Versão Internacional

"E pedimo-vos, irmãos, que respeitem aqueles que trabalham no vosso meio ao serviço do Senhor, que vos dirigem e vos aconselham." Versão O Livro

Do ponto de vista bíblico, os conceitos de liderar, presidir, pastorear, administrar, gerir, etc, nunca são "sobre". São sempre "entre", "com" ou "perante". Pode até dizer-se que, num certo sentido, são mais "sob" do que "sobre". Na realidade, os mandamentos para a sujeição mútua e para que consideremos os outros superiores a nós próprios apontam no sentido de nos considerarmos "sob" todos os demais, no contexto da igreja. Naturalmente, numa igreja saudável, ninguém fica efetivamente "sob" ninguém, porque esse mandamento aplica-se a todos. O que é seguro garantir é que ninguém fica "sobre" ninguém! Ou seja, apesar desta opção de tradução parecer inócua e até com algum caráter explicativo ou clarificador, faz exatamente o contrário, na medida em que, ao não se harmonizar com o restante registo bíblico, contradiz e compromete a demais doutrina do Novo Testamento, sobre este assunto.


Hebreus 13:17

"Obedecei a vossos pastores, e sujeitai-vos a eles; porque velam por vossas almas, como aqueles que hão de dar conta delas; para que o façam com alegria e não gemendo, porque isso não vos seria útil." Versão Almeida Corrigida Fiel.

Na versão acima indicada, bem como na Almeida Revista e Corrigida 1969 e na versão O Livro, a palavra "pastores" é introduzida, para identificar as pessoas a quem a congregação deve obedecer e a cujas orientações se deve sujeitar. No original, a palavra "pastor" não consta. Em vez disso, o original grego fala simplesmente sobre "os que vos guiam (lideram, orienta, conduzem)". Identificar essas pessoas com um título pode parecer uma ajuda para o leitor, mas, em vez disso, condiciona o seu pensamento, dirigindo-o para um termo que só é usado uma vez, em todo o Novo Testamento, em referência aos líderes da igreja (Efésios 4:11). Esta forma de identificar e titular os que nos guiam, força uma transposição da "função de pastoreio" (referida várias vezes no Novo Testamento), para o "título de Pastor".

Outras versões, no entanto, agravam o enviesamento de tradução, como as que vemos a seguir.

"Obedeçam aos seus líderes e sigam as suas ordens, pois eles cuidam sempre das necessidades espirituais de vocês porque sabem que vão prestar contas disso a Deus. Se vocês obedecerem, eles farão o trabalho com alegria; mas, se vocês não obedecerem, eles trabalharão com tristeza, e isso não ajudará vocês em nada." Versão Nova Tradução na Linguagem de Hoje. 

Esta versão introduz a palavra "ordens" que não se encontra no original.

"Obedeçam aos vossos pastores, aceitando as suas diretivas, porque eles procuram estar atentos às vossas almas, tendo de dar conta delas a Deus. Que eles o possam fazer com alegria, não a custo, pois isso não vos seria útil." Versão O Livro.

Nesta versão, não só é introduzida a palavra "pastores", como acrescente o termo "diretivas". 

"Obedeçam a seus líderes e façam o que disserem. O trabalho deles é cuidar de sua alma e disso prestarão contas. Deem-lhes motivo para trabalhar com alegria e não com tristeza, pois isso certamente não beneficiaria vocês." Versão Nova versão Transformadora.

Tanto o termo "diretivas", como o termo "ordens" não consta no original, não existindo sequer alguma palavra que possa conter essa possibilidade de significado. A instrução de fazer o que eles disserem também não faz jus aos texto bíblico. O original grego fala em "ceder ou deixar-se persuadir" (traduzido por "obedecer") e sujeitar-se aos que lideram. Não existe referência a ordens, diretivas, nem àquilo que eles dizem. Estes termos remetem para um exercício de autoridade, por parte dos líderes. Em vez disso, o conceito de sujeição e até obediência deve estar em consonância com o referido no versículo 7, deste mesmo capítulo: "Lembrai-vos dos vossos líderes, que vos ensinaram a Palavra de Deus; observando-lhes atentamente o resultado da vida que tiveram, imitai-lhes a fé.". Ou seja, o pressuposto é de que o líder lidera pelo exemplo que a sua própria vida transmite e não por ordens ou diretivas.

Mas, neste texto, ainda mais grave do que as "inserções" acima descritas é a introdução completamente arbitrária, tendenciosa, artificial e descabida da palavra "autoridade", como acontece nas seguintes versões:

"Obedeçam aos seus líderes e submetam-se à autoridade deles. Eles cuidam de vocês como quem deve prestar contas. Obedeçam-lhes, para que o trabalho deles seja uma alegria e não um peso, pois isso não seria proveitoso para vocês." Versão Nova Versão Internacional

"Sede obedientes aos vossos líderes espirituais e submissos à autoridade que exercem. Pois eles zelam por vós como quem deve prestar contas de seus atos; para que ministrem com alegria e não murmurando, porquanto desta maneira tal ministério não seria proveitoso para vós outros. Recomendações finais e bênção" Versão King James Atualizada

A palavra "autoridade" não consta no original e, num contexto de sujeição mútua ("sujeitai-vos uns aos outros"), nem sequer é uma inevitabilidade resultante do mandamento de sujeição. Portanto, tudo indica que existe uma agenda por detrás deste tipo de inclusão. Não se tratam de simples traduções, mas de textos que incluem, logo à partida, uma interpretação muito particular, específica e tendenciosa, com a qual, diga-se, o restante registo neotestamentário não concorda.


I Pedro 5:3

"Não abusem de sua autoridade com aqueles que foram colocados sob seus cuidados, mas guiem-nos com seu bom exemplo." Versão Nova Versão Transformadora

Neste versículo, felizmente, somente a Nova Versão Transformadora introduz o conceito da "autoridade" que os anciãos a quem Pedro se dirige teriam. A formulação parece benevolente e defensora dos que foram colocados aos cuidados dos líderes, ao dizer para não abusarem da autoridade. Mas, ao mesmo tempo, está a declarar que esses líderes detêm autoridade, o que não só não está no texto, como não encontra respaldo no restante registo do Novo Testamento. É portanto, uma alteração abusiva e tendenciosa do texto grego.

O original condena o exercício de domínio, num sentido mais autoritário do que a "simples" autoridade, utilizando uma palavra com a mesma raiz do primeiro dos dois termos que Jesus usou em Mateus 20:25. Pedro, por muitos visto como o líder dos próprios Apóstolos ou, pelo menos, como um líder, faz assim eco das palavras de Jesus, para condenar o exercício de autoritarismo (domínio) sobre o rebanho. Mas, de alguma forma, parece que o tradutor desta versão ficou como que incomodado com essa orientação e sentiu necessidade de adicionar uma palavra que reforçasse a autoridade do líder. Fê-lo indevidamente, adulterando o original e comprometendo a direção e sentido do texto. A totalidade das demais traduções deste versículo da carta de Pedro não inclui qualquer referência à autoridade, como se verifica, na seguinte versão.

"Nem como tendo domínio sobre a herança de Deus, mas servindo de exemplo ao rebanho." Versão Almeida Corrigida Fiel


Atos 20:28

"Olhai, pois, por vós, e por todo o rebanho sobre que o Espírito Santo vos constituiu bispos, para apascentardes a igreja de Deus, que ele resgatou com seu próprio sangue." Versão Almeida Corrigida Fiel

A preposição "sobre" que é introduzida nesta versão de Atos 20:28, pela versão Almeida Corrigida Fiel, também aparece nas seguintes oito versões: Almeida Revisada Imprensa Bíblica, Almeida Revista e Atualizada, Almeida Revista e Corrigida, Almeida Revista e Corrigida 1969, Nova Versão Internacional, Nova Versão Transformadora, King James Atualizada e João Ferreira de Almeida Atualizada. E, no entanto, não consta no original. Apesar de se poder argumentar que a palavra "bispo" encerra em si mesma a ideia de supervisão e que isso legitimaria o uso da preposição "sobre", em relação à supervisão sobre o rebanho, o facto é que esse termo não está presente no original. na realidade, em vez da preposição "sobre" (epi, em grego), consta a preposição "em", "no/na" ou "entre" (en, em grego). Ou seja, neste incidente de tradução, não ocorre somente a introdução de uma palavra inexistente no original (o que já seria grave só por si, particularmente tendo em atenção advertências como as de Apocalipse 22:18-19), mas uma completa substituição pura e simples. A preposição "em" foi propositadamente removida e trocada pela preposição "sobre". Este tipo de artifício desonra o texto bíblico, conduz ao erro e serve, mais uma vez, para alimentar uma tradição de hierarquia e autoridade, em vez de prover uma tradução clara e objetiva.

Melhores traduções desta preposição apresentam as seguintes versões:

"Cuidem de vocês mesmos e de todo o rebanho no qual o Espírito Santo os colocou como bispos, para pastorearem a igreja de Deus, a qual ele comprou com o seu próprio sangue." Versão Nova Almeida Atualizada

"Cuidem de vocês mesmos e de todo o rebanho que o Espírito Santo entregou aos seus cuidados, como pastores da Igreja de Deus, que ele comprou por meio do sangue do seu próprio Filho." Nova Tradução na Linguagem de Hoje

"Agora, olhem por vocês próprios e pelo rebanho de Deus. O Espírito Santo vos constituiu pastores para alimentar a sua igreja, que ele comprou com o seu próprio sangue." Versão O Livro


Tito 2:15

"Fala disto, e exorta e repreende com toda a autoridade. Ninguém te despreze." Almeida Corrigida Fiel

Neste versículo do texto que Paulo escreveu a Tito, encontramos a expressão "com toda a autoridade" em todas as versões consultadas, em língua portuguesa e em mais de 90% das consultadas na língua inglesa. Poderíamos pensar: "Bem, se está assim em todas as versões, então tem que estar certo!" Diríamos que deve ser isto mesmo que o original diz e de certeza que não será um curioso do estudo bíblico que irá corrigir centenas de tradutores bíblicos, num trabalho desenvolvido ao longo de séculos!. E, no entanto, a palavra que é normalmente traduzida como "autoridade" (exousia) não se encontra no original deste versículo. Em vez disso, consta a palavra grega epitagé, que significa "instrução, mandamento, ordem, autoridade." Ou seja, se é verdade que a ideia de autoridade está presente nos vários sentidos que podem ser atribuídos a esta palavra, também é certo que não seria essa a primeira escolha. Faria mais sentido traduzir por "com toda a instrução" ou "com todo o mandamento", o que seria completamente condicente com o demais registo bíblico que aponta para a plenitude dos mandamentos divinos como sendo o material adequado para "para ensinar, para redarguir, para corrigir, para instruir em justiça" (II Timóteo 3:16).

Curiosamente, este termo grego epitagé, surge somente em outras seis ocasiões no Novo Testamento, para além de Tito 2:15 (Romanos 16:26; I Coríntios 7:6; I Coríntios 7:25; II Coríntios 8:8; I Timóteo 1:1 e Tito 1:3) e só nesta referência é que é traduzido como "autoridade". Em todos os outros lugares e em todas as versões consultadas, é traduzido com termos como "mandamento", "ordem", "mandado" ou variantes destes, como, aliás, faz todo o sentido. Em algumas versões, quer em português, quer em inglês, os tradutores chegaram ao ponto extremo de traduzir como "com toda a tua autoridade" (Nova Tradução na Linguagem de Hoje, GOD'S WORD® Translation, Good News Translation, Contemporary English Version, Weymouth New Testament). 

De entre um total de cerca de cinquenta versões e traduções, tanto em inglês como em português, somente em quatro delas encontramos uma expressão diferente de "toda a autoridade": Young's Literal Translation - "all charge", Smith's Literal Translation - "all order", Coverdale Bible of 1535 - "all earnest" e Tyndale Bible of 1526 - "all commaundynge" (forma arcaica de "all commanding"). Embora se possa debater se algum destes quatro termos faria ou não melhor justiça ao texto original, parece-me evidente que "com toda a autoridade" não honra o registo original. Não só porque não é essa a palavra que lá está, mas também porque o texto não se refere a esse sentido, e sim ao referencial da verdadeira e inalterada autoridade que são os mandamentos divinos, conforme registados nas Escrituras. Ao escolher o termo "autoridade" para esta tradução, o tradutor volta a dar combustível para a construção tradicionalista e extrabíblica de que a liderança traduz-se num exercício de autoridade. O pecado em que incorre quem traduz desta forma é fazer deslocar o foco da autoridade divina, da Sua Palavra, para aquele que a proclama. Esta é uma deslocação indevida que fere não só a essência da Palavra, mas perverte o papel do líder. O líder não tem, nem exerce autoridade. Em vez disso, ele aponta para a autoridade!


I Tessalonicenses 2:6-7

"We were not looking for praise from people, not from you or anyone else, even though as apostles of Christ we could have asserted our authority." ("Não estávamos a buscar elogios das pessoas, nem de vocês nem de qualquer outra pessoa, embora, como apóstolos de Cristo, pudéssemos ter afirmado a nossa autoridade.") New International Version

De entre quarenta e cinco versões em Inglês, deste texto, treze delas utilizam a palavra "autoridade". Apesar de se tratar de uma situação referente diretamente ao apóstolo Paulo, reconhecendo-se-lhe a autoridade apostólica (Efésios 2:20), no original deste texto, não consta o termo grego exousia, que seria traduzido por "autoridade". O termo usado por Paulo é dunamai, que significa "sou poderoso, tenho poder, sou capaz, posso". No contexto, Paulo está a falar sobre a possibilidade ou direito que tinha de esperar que os crentes suportassem o seu ministério, através de ofertas materiais. Em vez de fazer uso desse direito, Paulo tinha procurado não ser um peso para eles.

As restantes 32 versões, em inglês, deste texto, em vez de usarem o termo "autoridade", recorrem a outras palavras que fazem mais justiça ao texto e ao seu sentido, como por exemplo: "had the right" ("tinha o direito"), "could" ("poderia"), "had the power" ("tinha o poder"), "might have"  ("poderia ter"). 

Apesar das versões em português não fazerem uso do termo "autoridade", não deixa de ser sintomático que um percentagem tão elevada das versões em inglês recorram a esse artifício. A utilização desta palavra, onde a expressão original não a exige, nem a sugere em primeira ou segunda linha, indicia, mais uma vez, um enviesamento que não ajuda a lançar luz sobre o texto, nem conduz na direção certa. Em vez disso, aumenta o condicionamento tradicionalista de uma liderança que exerce autoridade, a qual não ocorre em outro contexto que não o hierárquico. Reforça-se que, no caso de Paulo, até faz sentido falar da sua autoridade, na qualidade de apóstolo. Mas, nem mesmo isso justifica a utilização tendenciosa do termo "autoridade", neste texto.


Romanos 12:1

"Portanto, meus irmãos, por causa da grande misericórdia divina, peço que vocês se ofereçam completamente a Deus como um sacrifício vivo, dedicado ao seu serviço e agradável a ele. Esta é a verdadeira adoração que vocês devem oferecer a Deus." Versão Nova Tradução na Linguagem de Hoje

Embora este texto não tenha a ver, diretamente, com a liderança da igreja cristã, é de suma importância para a compreensão da vida nova que temos em Cristo e para aquilo que Lhe é agravável, enquanto vida de adoração. Em resumo, o texto aponta no sentido de nos entregarmos a Deus, como se de um sacrifício se tratasse, mas vivo, dedicado a Deus e que Lhe agrade. De acordo com a versão acima citada, essa é a verdadeira adoração que Lhe agrada. 

Na Nova Versão Transformadora, lemos "Portanto, irmãos, suplico-lhes que entreguem seu corpo a Deus, por causa de tudo que ele fez por vocês. Que seja um sacrifício vivo e santo, do tipo que Deus considera agradável. Essa é a verdadeira forma de adorá-lo.". Nesta versão, a parte final do versículo aponta no sentido da verdadeira forma de adorar Deus. 

Embora ambas as versões terminem o versículo de forma semelhante, a tradução escolhida não honra o texto original. De facto, todas as demais versões portugueses apresentam uma expressão que traduz com muito maior precisão a forma como o versículo termina. No original, lê-se "logiken latreia", em português "culto racional", "serviço racional" ou "adoração racional". Esta expressão, em conjunto com a parte inicial do versículo, mostra que, por um lado, a adoração que Deus espera de nós é mais do que um momento ou ato de culto regular. É uma entrega constante, que não é nada menos do que a própria vida, em contraposição a um momento semanal em que nos reunimos com os irmãos. Por outro lado, a palavra "racional" aponta para uma adoração ou serviço a Deus que é com entendimento, com racionalidade, com o exercício do intelecto. Assim, embora não se esteja a excluir toda a dimensão emocional da vivência humana, fica claro o apelo a que a inteligência seja colocada ao serviço de Deus. Ora, este tipo de atitude, em que a mente é chamada a intervir, é inquiridora, crítica, analítica e não se contenta em fazer "porque sempre se fez assim" ou em não fazer "porque não é assim que se tem feito". A adoração racional questiona, examina, coloca à prova, desafia, investiga, explora, usa a mente. Naturalmente que o deve fazer, sempre em sujeição à soberania de Deus (II Coríntios 10:5) e com a Bíblia como campo central de toda essa atividade investigativa e cognitiva. Mas, não se abstém de o fazer. Esta atitude resulta, também do facto de termos "mente de Cristo" (I Coríntios 2:16) e de nos ser exigido que examinemos tudo (I Tessalonicenses 5:21). 

O conceito de "culto racional" é, assim, central à compreensão de toda a dinâmica da vida cristã e custa compreender por que razão, algumas traduções não fazem mais rigoroso eco do mesmo. Mais grave ainda é o facto da maioria das traduções modernas em língua inglesa, escolherem expressões que diluem o sentido original, com expressões como "spiritual worship" (adoraçõa espiritual), "proper worship" (adoração adequada), "spiritual service of worship" (serviço espiritual de adoração) ou "true worship" (verdadeira adoração). De facto, de entre as quinze versões modernas consultadas, somente três usam alguma expressão que denota a ideia da razão ser usada, para a adoração: Amplified Bible ("rational (logical, intelligent) act of worship" - ato de adoração racional (lógico, inteligente)), International Standard Version ("reasonable way for you to worship" - forma razoável/racional de adorares) e NET Bible ("reasonable service" - serviço razoável/racional). É necessário recorrer às versões mais antigas e às traduções literais, para então encontrarmos expressões mais fieis ao original.

Questiono o porquê destas opções que, não só diluem o sentido original, como o ocultam e conduzem o leitor numa direção que, neste caso de Romanos 12:1, até pode não ser propriamente errada, mas claramente não é a que o texto pretende indicar. Porquê camuflar um texto que desfia ao uso da razão? Porquê conduzir milhares de leitores por um caminho que não deixa clara a obrigação de usar o intelecto, de fazer perguntas, de refletir, investigar e usar a mente? Parecem-me questões legítimas, particularmente porque, neste caso em particular, não estamos perante uma opção de tradução que explique ou expanda o significado original. Em vez disso, faz exatamente o contrário: oculta, deflete e camufla. Será que a agenda por detrás destas traduções enviesadas é a proteção de algum status quo? Será para resguardar as lideranças que vêm qualquer questionamento ou processo de reflexão como atos de "rebeldia contra o Senhor e o Seu ungido"? Será por se considerar que o "espiritual" é mais importante e necessário do que o "racional"? Será porque Deus procura os que o adoram "em espírito e em verdade" (João 4:23) e, de alguma forma pensa-se que a razão não tenha aí lugar? Seja qual for a razão, não justifica a deturpação do original, com uma expressão que desvia completamente o leitor bíblico do sentido do texto.


Atos 14:23

"Paulo e Barnabé designaram-lhes presbíteros em cada igreja; tendo orado e jejuado, eles os encomendaram ao Senhor, em quem haviam confiado." Nova Versão Internacional

A versão acima transcrita, em conjunto com a Nova Tradução na Linguagem de Hoje, a Nova Versão Transformadora, a Versão O Livro e trinta e seis das quarenta e cinco verões consultadas em inglês, traduzem a primeira parte deste versículo de forma a indicar que Paulo e Barnabé "designaram", "ordenaram", "estabeleceram" ou "escolheram" os líderes que ficariam responsáveis por cada igreja. Esta forma de traduzir indica uma disposição unidirecional de Paulo e Barnabé, na escolha dos líderes das igrejas, implicando um papel passivo e meramente aceitador, por parte das igrejas, em relação às indicações do Apóstolo e companheiro. Esta leitura parece querer substanciar a ideia de que o papel de escolha da liderança de cada igreja teria que ser por intervenção de outros da mesma "categoria" ou "classe". Não está aqui em causa se este texto descreve uma imposição autoritária por parte de Paulo e Barnabé ou uma disposição benevolente, para abençoar os irmãos das igrejas recém-formadas. Pura e simplesmente, o original não se refere a uma indicação, ordenação ou estabelecimento unidirecional por parte de Paulo e Barnabé, mas sim a um ato de eleição ou votação, por mãos no ar. O termo χειροτονέω ("cheirotoneó") usado neste versículo significa "eleger pela mostra das mãos, escolher por votação, designar". Apesar do sentido de "designar" ser uma das possibilidades de tradução, não é mais comum, nem deveria ser a primeira escolha.

A ideia do original deste texto é que houve algum processo de votação, eleição, escolha com as mãos levantadas, o qual resultou na escolha dos líderes de cada igreja. Como não faria qualquer sentido que este tipo de votação ocorresse somente entre Paulo e Barnabé, nem entre Paulo, Barnabé e as lideranças das igrejas (porque ainda nem sequer existiam) é legítimo considerar que toda a igreja, em cada cidade, esteve envolvida no processo. Ou seja, em vez de estarmos perante um texto em que líderes designam outros líderes, mesmo em trabalhos, missões ou igrejas recém-formadas, a evidência é que se levaram a cabo processos de votação democrática, participados por toda a igreja. Algumas versões em português e duas em inglês fazem eco deste sentido mais claro do texto, que contrariam os enviesamentos de "sucessão clerical" e "paternalismo sacerdotal".

Algumas versões da tradução de João Ferreira de Almeida dão um passo no sentido certo, ao introduzir a expressão "por comum consentimento". Mas ficam aquém na medida em que mantêm a ideia de que o ato de eleição foi realizado por Paulo e Barnabé, como a seguir se verifica.

"E, havendo-lhes, por comum consentimento, eleito anciãos em cada igreja, orando com jejuns, os encomendaram ao Senhor em quem haviam crido." Almeida Corrigida Fiel, Almeida Revista e Corrigida e Almeida Revista e Corrigida 1969

Outras versões fazem maior justiça ao texto original, mostrando que a participação de Paulo e Barnabé foi a condução do processo eleitoral, por assim dizer, e não uma qualquer disposição ou orientação unidirecional, o que faz toda a diferença e muito mais justiça ao sentido do texto.

"E, havendo-lhes feito eleger anciãos em cada igreja e orado com jejuns, os encomendaram ao Senhor em quem haviam crido." Almeida Revisada Imprensa Bíblica

"E, promovendo-lhes, em cada igreja, a eleição de presbíteros, depois de orar com jejuns, os encomendaram ao Senhor em quem haviam crido." Almeida Revista e Atualizada e Nova Almeida Atualizada

Em inglês, encontramos somente nove versões, de entre as quarente e cinco consultadas, cuja tradução indica alguma forma de processo de votação, por parte de todos (Paulo, Barnabé e as igrejas), para a escolha dos líderes. Nesta versões, são usadas as seguintes expressões: "They had the disciples in each church choose spiritual leaders" ("fizeram com que os discípulos em cada igreja escolhessem os líderes espirituais") GOD'S WORD® Translation, "chosen for themselves elders in every church" ("escolhido para si próprios anciãos em cada igreja") A Faithful Version, "ordeined them Elders by election" ("ordenando-lhes Anciãos por eleição") Geneva Bible of 1587, Bishops' Bible of 1568, Coverdale Bible of 1535, Tyndale Bible of 1526, "appointed to them elders in every assembly by vote" ("indicado-lhes anciãos, em cada assembleia, por voto") Literal Standard Version, "appointed to them by vote elders" (indicado-lhes, por voto, anciãos") Young's Literal Translation e "selected Elders by show of hands" ("selecionado Anciãos, por mostra das mãos") Weymouth New Testament.

O que poderia parecer um pormenor, uma mera opção estilística ou literária da tradução deste texto, acaba por ter um peso determinante no conceito de liderança da igreja local, em particular no seu estabelecimento e sucessão. Através do recurso ao original, não só conseguimos eliminar a ideia de que os líderes é que são responsáveis e capacitados para o reconhecimento e estabelecimento de novas lideranças, como percebemos a verdadeira dinâmica democrática e autónoma de cada igreja nesse processo. A clara compreensão deste texto lança também uma nova luz no texto de Tito 1:5, no qual Paulo instrui Tito a estabelecer líderes cristãos, em cada cidade. A forma como Paulo termina o versículo dirigido a Tito é: "constituísse presbíteros em cada cidade, como eu o instruí.". Sem prejuízo das qualificações para o líder cristão que Paulo lhe dá nos versículos seguintes, fica claro que Paulo já tinha dado instruções a Tito sobre como o deveria fazer. Ora, se o procedimento de Paulo era o de promover processos de votação democrática, para que cada igreja escolhesse os seus líderes, é natural que tenha sido também essa a forma como Tito foi instruído a proceder.


Conclusão

Os seis primeiros textos bíblicos que indico acima são, normalmente, usados na defesa da ideia de que a liderança cristã tem ou exerce algum tipo de autoridade. Quer se trate de um conceito de autoridade espiritual, "espiritualizada" ou algum outro tipo mais diretivo e "executivo", defendem-na como tendo sido delegada ou conferida por Cristo, o Cabeça da Igreja, ao líder da igreja. No entanto, se repararmos com atenção para os seis textos acima referidos, no seu original, verificamos que, afinal, em vez de consubstanciarem uma doutrina bem assente em alicerces bíblicos, temos, na melhor das hipóteses, um enorme "castelo de cartas". O lamentável é que a forma como este "castelo" é apresentado e defendido parece mesmo que é feito de blocos, cimento e ferro, particularmente ao "crente comum" que, em vez de usar a razão para questionar e investigar, se contenta e conforma com ouvir e aceitar.

Não tenho habilitações, nem habilidades necessárias para me considerar um conhecedor dos textos bíblicos originais, nem mesmo um estudioso razoável. Tenho, no entanto, interesse, curiosidade e desejo de conhecer, para entender e aplicar. O trabalho de tradução da Bíblia é algo de inestimável valor e importância, não só pela quantidade de pessoas que ao seu resultado recorrem, mas pela importância dos conteúdos traduzidos, em virtude da sua origem que considero divina. É, portanto, um trabalho que se reveste de uma tal sensibilidade que não pode deixar nenhum dos seus intervenientes indiferente. Primar por elevados padrões de rigor, transparência e fidelidade deve ser a prioridade de quem enceta tamanha tarefa. Não defendo que devamos desprezar, pura e simplesmente, a variedade de traduções que se nos apresenta. Todavia, exige-se de cada um de nós um redobrado grau de escrutínio e inquirição aos textos que nos chegam às mãos.

Neste artigo, refiro somente alguns exemplos de opções de tradução que me parecem claramente questionáveis, tendo em atenção o enviesamento que as mesmas apresentam. Tratando-se de exemplos que dizem respeito, na sua quase totalidade, à liderança da igreja, fica a questão sobre as agendas ou pressupostos que estariam por detrás das referidas opções. O padrão de escolhas verificadas nestes exemplos deixa um rasto do peso condicionador de algumas tradições extrabíblicas, como seja a concepção de que a liderança da igreja cristã ocupa uma posição de autoridade. Considero esta situação extremamente preocupante, mas não surpreendente, tendo em atenção que é exatamente das lideranças eclesiásticas que tem saído a maior parte dos esforços de tradução. Infelizmente, não fico menos preocupado em relação a outros textos, que versam outros assuntos e que poderão ter sido alvo de semelhantes ou equivalentes enviesamentos.

Até há algum tempo atrás, eram pouco os que tinham acesso a formação e recursos que permitissem aceder e estudar os originais. Mas hoje isso já não é verdade. O que não faltam são recursos (essencialmente online), de acesso gratuito, para o comum leitor da Bíblia conduzir a sua investigação dos textos originais. Hoje, no entanto, o desafio é duplo. Por um lado, exige-se de nós um esforço redobrado em investigar, recolher diretamente do texto original e permitir que o mesmo nos desafie, questione e ensine. Por outro lado, temos a enorme tarefa de desconstruir as estruturas de pensamento que traduções enviesadas e interpretações tendenciosas assentes sobre aquelas têm vido a construir e sedimentar, ao longo de séculos. Que o Senhor nos dê graça para tanto!


Referências:
Versões em Português: https://www.bibliaonline.com.br/
Versões em Inglês e texto original: https://biblehub.com/

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