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O ungido do Senhor


Esta expressão tem sido, frequentemente, mal empregada por líderes religiosos, dos mais variados quadrantes do cristianismo, os quais arrogam o título de «ungidos do Senhor». Normalmente, surge como forma de resposta a quem ousa questionar ou discordar, mesmo que de acordo com preceitos bíblicos, com algum aspeto da sua liderança; ou em momentos em que o líder pretende fazer prevalecer a sua posição ou opinião, em detrimento das demais; ou, até, como ferramenta de manipulação e chantagem sobre o rebanho.
Usando esta expressão e citando textos como o de 1 Samuel 26:4, em que David afirma, sobre Saul, “O Senhor me guarde de que eu faça tal coisa ao meu senhor, ao ungido do Senhor, que eu estenda a minha mão contra ele, pois é o ungido do Senhor”, de maneira prepotente, mas eficaz, conseguem levar a sua avante.

No Antigo Testamento, a unção com os melhores óleos, por vezes, aromatizados com ervas, tinha um significado especial, normalmente associado à separação - santificação, de pessoas ou de objetos, para um serviço importante.

Saul, o primeiro rei de Israel, fazia parte, então, de um dos três grupos de homens, no Antigo Testamento, especialmente escolhidos por Deus e ungidos para os seus ofícios: reis, sacerdotes e profetas.

A mesma expressão foi aplicada a David, o rei que lhe sucedeu: “Os reis da terra se levantam e os governos consultam juntamente contra o Senhor e contra o seu ungido” (Salmo 2:2), neste caso, numa clara referência profética, a qual viria a cumprir-se na pessoa de Jesus.

Esta expressão foi, também, aplicada ao rei persa, Ciro, que foi comissionado por Deus para libertar o povo judeu: “Assim diz o Senhor ao seu ungido, a Ciro, a quem tomo pela mão direita, para abater as nações diante de sua face, e descingir os lombos dos reis, para abrir diante dele as portas, e as portas não se fecharão” (Isaías 45:1). Neste acontecimento, o rei Ciro foi um tipo profético de Cristo ao exercer o simbólico papel de libertador.

Os sacerdotes, por seu turno, eram ungidos para exercerem o ministério relacionado com a entrega de sacrifícios no templo: “E o sacerdote, que for ungido, e que for sagrado, para administrar o sacerdócio, no lugar de seu pai, fará a expiação, havendo vestido as vestes de linho, as vestes santas” (Levítico 16:32). Toda a atividade do sacerdote, desde a sua unção, preparação, indumentária e rituais, aludia a Jesus Cristo, o qual viria a cumprir em si mesmo o sacrifício último pelos nossos pecados e em quem temos “um grande Sumo Sacerdote (…) que penetrou nos céus” (Hebreus 4:13).

Isaías afirma que havia sido ungido por Deus: "O espírito do Senhor Deus está sobre mim; porque o Senhor me ungiu, para pregar boas novas aos mansos; enviou-me a restaurar os contritos de coração, a proclamar liberdade aos cativos, e a abertura de prisão aos presos" Isaías 61:1. Apesar deste texto ter um forte cariz profético, com o seu cumprimento na pessoa de Jesus, não deixa de informar que Isaías, enquanto profeta de Deus, também havia sido ungido.

Ainda no Antigo Testamento, a designação de «ungido» é estendida por David a todos os membros do povo de Deus: “Quando eram poucos homens em número, sim, muito poucos, e estrangeiros nela, quando andavam de nação em nação, e de um reino para outro povo, a ninguém permitiu que os oprimisse, e por amor deles repreendeu reis, dizendo: Não toqueis os meus ungidos, e aos meus profetas não façais mal” (Salmos 105:12-15; 1 Crónicas 16:19-22). Também Habacuque (3:13), profeticamente, aponta para o sacerdócio universal dos crentes, ao designar o povo de Deus de ungidos: “Tu saíste para salvação do teu povo, para salvação dos teus ungidos…”.

Portanto, se os três ofícios do Antigo Testamento foram plenamente cumpridos em Cristo - o Rei que estabeleceu para sempre o trono de David, o Sumo Sacerdote eterno e o grande Profeta de Deus ao homem, no Novo Testamento, é clara a aplicação desta expressão à pessoa de Jesus como O Ungido do Senhor: “O Espírito do Senhor é sobre mim, pois que me ungiu para evangelizar os pobres. Enviou-me a curar os quebrantados do coração” (Lucas 4:18); e “Levantaram-se os reis da terra, e os príncipes se ajuntaram à uma, contra o Senhor e contra o seu Ungido” (Atos 4:26).

Paulo afirma aos coríntios que ele e os que se encontravam com ele (pelo menos, Timóteo) haviam sido ungidos por Deus: “Mas o que nos confirma convosco em Cristo, e o que nos ungiu, é Deus” (1 Coríntios 1:21). Da leitura deste texto poderíamos ser inclinados a pensar que os líderes espirituais seriam os atuais ungidos do Senhor (Paulo era apóstolo e o Timóteo era pastor). Mas, para uma boa exegese bíblica, é necessário considerar todos os textos relacionados.

João, numa carta que foi dirigida às igrejas, lança uma luz extremamente importante sobre este assunto: “Ora, vós tendes a unção da parte do Santo, e todos tendes conhecimento (...) E a unção que vós recebestes dele, fica em vós, e não tendes necessidade de que alguém vos ensine; mas, como a sua unção vos ensina todas as coisas, e é verdadeira, e não é mentira, como ela vos ensinou, assim nele permanecereis” (I João 2:20,27). De acordo com este texto fica claro que, no contexto neotestamentário (em cuja extensão vivemos), ser ungido de Deus não é uma prerrogativa exclusiva de alguns, mas uma bênção estendida a todos os crentes no Senhor Jesus.

Pedro também não deixa margem para dúvidas ao referir-se à totalidade dos crentes como o «sacerdócio real», estabelecendo um paralelo com os equivalentes personagens (sacerdotes e reis) do Antigo Testamento: “Mas vós sois a geração eleita, o sacerdócio real, a nação santa, o povo adquirido, para que anuncieis as grandezas daquele que vos chamou das trevas para a sua maravilhosa luz; vós que outrora nem éreis povo, e agora sois de Deus; vós que não tínheis alcançado misericórdia, e agora a tendes alcançado” (1 Pedro 2:9,10).

Por outras palavras, se no Antigo Testamento esta expressão era, fundamentalmente, aplicada a sacerdotes, reis e profetas, no Novo Testamento não restam dúvidas que todos os que se arrependeram dos seus pecados e depositaram a sua fé em Jesus são ungidos do Senhor: “Mas aquele que nos confirma convosco em Cristo, e nos ungiu, é Deus, o qual também nos selou e nos deu como penhor o Espírito em nossos corações” (2 Coríntios 1:21,22).

Existem, portanto, diversos problemas teológicos com a aplicação da expressão «o ungido do Senhor» aos líderes da igreja. Dada a extensão da sua discussão, não me deterei sobre todos eles. Destaco somente dois.

Em primeiro lugar, a maior parte dos líderes religiosos que fazem uso desta expressão em relação a si próprios, assumem o que, comummente, designam de «posição de autoridade», à qual, a utilização da fórmula «ungido do Senhor» confere um tipo especial de crédito e poder. No entanto, a liderança cristã, bíblica, não é uma posição, nem é de autoridade (Mateus 20:25-28; 1 Pedro 5:2-3), mas sim uma função e um serviço que se destinam a ser imitados (João 13:20; 1 Timóteo 4:12).

Em segundo lugar, existe uma diferença abissal entre dizer-se «um ungido do Senhor» e «o ungido do Senhor». A diferença entre o artigo indefinido e o definido marca um contraste como que da noite para o dia. Todos os crentes, incluindo os líderes, podem afirmar-se como sendo «um ungido do Senhor», porque a Bíblia mostra que Deus nos ungiu a todos ao derramar o seu Espírito sobre a igreja (Atos 2:17,18,33; Tito 3:4-6). Mas o título de «o ungido do Senhor», de acordo com os textos acima transcritos, só se pode aplicar devidamente à pessoa de Jesus.

Assim sendo, qualquer que se arrogue um título e uma posição que pertencem exclusivamente a Jesus, não faz mais do que colocar-se a si mesmo no Seu lugar. E, para esses, a Bíblia tem outra designação…

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