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O trabalho do Senhor

Somos ensinados a fazer a distinção entre sagrado e secular, em relação a quase tudo o que diz respeito à nossa vida. As coisas de Deus e as coisas do mundo, as coisas espirituais e as materiais, o religioso e o profano, o espiritual e o secular. Este dualismo na vivência religiosa é bastante comum e tem uma forte influência, também, nas nossas igrejas.

Se, por um lado, Jesus ensinou que nós, enquanto seus discípulos, não somos deste mundo (João 15:19; 17:6) – pelo que não nos devemos conformar a ele (Romanos 12:2), nem viver segundo os seus princípios (Colossenses 2:8), nem amá-lo (I João 2:15), nem ter com ele qualquer espécie de intimidade, pois tal constitui inimizade contra Deus (Tiago 4:4) – por outro lado, o mesmo Jesus nos constituiu “sal da terra e a luz do mundo” (Mateus 5:13-16).

Como é possível conciliar duas perspetivas, aparentemente, tão díspares?

É que a Palavra de Deus, ensinando a separação, ensina também a integração: não a assimilação dos princípios e valores do mundo, mas a integração, na vida do crente, dos princípios da fé, dos valores cristãos e da soberania do Reino de Deus. É neste sentido que para o crente em Jesus, em todos os domínios da sua vida, deixa de existir qualquer distinção entre sagrado e secular, pois tudo na sua vida é sagrado, tudo é influenciado e afetado pela sua fé em Jesus Cristo.

Uma das áreas em que esta distinção se faz mais notar é no domínio das vocações/profissões. Por exemplo, a maneira como se aborda o assunto da chamada de Deus para o ministério forma a ideia de que alguns são chamados para “o trabalho do Senhor” – os pastores e missionários, enquanto outros terão que se contentar com um “trabalho do mundo”. O entendimento é que estes outros trabalhos são dádiva de Deus para o nosso sustento financeiro, e que também podemos servir ao Senhor através deles, dando um bom testemunho pessoal junto de colegas, clientes e patrões.

Contudo, se é necessário e importante angariar sustento e testemunhar no local de trabalho, a verdade é que tal não é suficiente. Esta visão reducionista dos trabalhos ditos seculares acaba por velar a realidade bíblica de que todo o trabalho legal e moral em que o crente se encontra envolvido é o trabalho do Senhor, porque é ao Senhor que o crente pertence. Não somente porque foi Deus que lho deu, para o seu sustento ou porque o deve aproveitar para testemunhar, mas porque é o ministério para o qual o Senhor chama os seus servos.

Não podemos fundamentar biblicamente a ideia mais ou menos elitista, de que Deus só chama alguns poucos para o Seu ministério e aos outros dá profissões, como se de um mal necessário se tratasse, para obterem sustento e darem testemunho. Deus chama TODOS para o Seu ministério, nas mais diversas ocupações e funções. Vejamos o que a Bíblia nos ensina.

- Em primeiro lugar, importa salientar que os primeiros trabalhos criados por Deus e concedidos ao Homem, não foram nenhuma das profissões consideradas como sagradas hoje em dia (pastor, missionário, evangelista, etc.). As primeiras profissões para as quais o Homem foi chamado foram agricultor e zelador (Génesis 2:15). Adão deveria cuidar do Jardim do Éden e guardá-lo, ainda antes de existir pecado no mundo, como sendo o ministério (serviço) que Deus lhe tinha conferido. Portanto, logo desde o início da existência da Humanidade o conceito de servir ao Senhor estava associado a atividades bastante “mundanas”.

- Em segundo lugar, vemos que Deus chamou e capacitou servos para diversos tipos de trabalhos manuais (Êxodo 31:2-11). É verdade que se tratavam de trabalhos associados aos utensílios para o tabernáculo, mas não deixa de ficar evidente que estes trabalhos, no seu conteúdo funcional, não entrariam na classificação de “trabalho do Senhor”, de acordo com a nossa linguagem religiosa.

- Em terceiro lugar, existem inúmeras referências, ao longo de toda a Bíblia, relativas à ética cristã do trabalho (Salmo 128:2; Provérbios 10:4,12:11,14:23,21:25; Eclesiastes 9:10; Efésios 4:28; II Tessalonicenses 3:6-10). Estas apontam para a impossibilidade de separar o espiritual do secular, na medida em que toda a vivência dos princípios e valores bíblicos tem que estar presente em cada momento da vida do cristão. Aliás, quando estes valores bíblicos não estão presentes na vida profissional do cristão, é legítimo duvidar que existam sequer quaisquer valores cristãos genuínos, em qualquer outro momento da sua vida. O livro dos Provérbios (16:3) fala da atitude de entrega que o trabalhador cristão deve ter para com as suas tarefas: “Entrega ao Senhor as tuas obras, e teus desígnios serão estabelecidos.” Na essência da ética cristã do trabalho existe a consciência de que tudo o que fazemos deve estar nas mãos de Deus. Esta não é somente uma atitude de dependência da provisão divina, como é uma afirmação da santidade das nossas profissões e mais variadas tarefas.

- Em quarto lugar, a soberania de Deus sobre as nossas vidas inclui, como é natural, todas as dimensões da nossa vida, pelo que a área profissional não é diferente. É Ele quem nos dá o trabalho (Jeremias 29:11), é Ele quem nos dá força e saúde para trabalhar (Deuteronómio 8:18), é Ele quem trabalha a nossa vontade e quem produz o nosso concretizar (Filipenses 2:13), é Ele quem, no final das contas, trabalha por nós, ou o nosso trabalho seria inútil (Salmo 127:1). Se tudo o que somos e temos lhe pertence, o trabalho não é exceção.

- Em quinto lugar, podemos considerar que os dons (I Coríntios 12 e outros) e talentos (Tiago 1:17) que Deus confere aos seus filhos são a forma mais clara de Deus evidenciar o seu chamado para as tarefas ou trabalhos que Ele pretende. Se é certo que existe uma lista com diversos dons espirituais que capacitam e, implicitamente, convocam o crente para o exercício de ministérios dentro do contexto da igreja local (ex: pastoreio, pregação, ensino, liderança, aconselhamento, evangelismo, etc.), também é certo que existem inúmeros talentos que constituem um chamado divino para o exercício das mais variadas atividades dentro e fora do contexto da igreja local (contabilidade, agricultura, medicina, artes, arquitetura, mecânica, gestão…).

- Em sexto lugar, não pode ser exagerada a necessidade de considerarmos o objetivo da glória de Deus, em tudo o que fazemos (I Coríntios 10:31). Isto é, não há como encarar biblicamente a nossa atividade profissional sem ser através deste filtro. Seja a atividade que for, salvaguardando, como é natural, a sua legalidade e sentido moral, ela deve ser exercida para a glória de Deus. Assim sendo, se é possível reverter glória para Deus em tudo o que fazemos, qualquer profissão deve ser exercida para a glória de Deus. E isto não é uma mera referência ao testemunho pessoal e ao exercício de atitudes cristãs como a verdade, a honestidade e o perdão. O exercício em concreto da profissão e das várias tarefas a ela associadas, deve ser para a glória de Deus. Deus chama-nos para cada uma das profissões em que estamos, para o glorificar, naquilo que fazemos!

- Em sétimo lugar, o apóstolo Paulo deixa claro que tudo o que fazemos no nosso trabalho, devemos fazê-lo “como ao Senhor” (Efésios 6:5-7, Colossenses 3:23). O texto de Efésios 6:5-7 é particularmente claro: “Vós, servos, obedecei a vossos senhores segundo a carne, com temor e tremor, na sinceridade de vosso coração, como a Cristo, não servindo somente à vista, como para agradar aos homens, mas como servos de Cristo, fazendo de coração a vontade de Deus, servindo de boa vontade como ao Senhor, e não como aos homens. Sabendo que cada um, seja escravo, seja livre, receberá do Senhor todo bem que fizer.” A ideia não é tanto a de que deveremos exercer as nossas atividades da mesma forma como faríamos se estivéssemos a servir ao Senhor, mas que, ao exercê-las, estamos, de facto, a servir ao Senhor! Paulo escreve “fazendo de coração a vontade de Deus”. Exercer a nossa profissão, executando as tarefas que nos são confiadas, é fazer a vontade de Deus.

Logo, não há como não concluir que as nossas profissões são a vontade de Deus para nós e, assim sendo, o ministério para o qual ele nos chama. Ao lavrar o campo, ao redigir um ofício, ao assentar um tijolo, ao serrar uma tábua, ao aplicar uma injeção, ao preparar uma aula, ao lavar o chão, ao soldar uma peça, ao recolher o lixo, ao preencher uma folha de cálculo, ao atender um cliente, estamos a servir o Senhor. Esta é a nossa chamada, a nossa vocação divina e Deus espera a nossa fidelidade e empenho no seu exercício.

É por isso que expressões como “servir ao Senhor de forma integral”, ou “a tempo inteiro” ou, ainda, “tenho esta profissão, mas também sirvo ao Senhor”, não me parecem fazer muito sentido do ponto de vista bíblico. Não existe outra hipótese de servir ao Senhor a não ser de forma integral! Se dizemos que servimos Deus em tempo parcial (como é habitual designar-se a situação de alguém que, tendo um trabalho secular, tem, também, responsabilidade na igreja local), deixamos implícito que há momentos na nossa vida em que não o fazemos. E, se assim é, fica a questão: A quem estamos a servir, quando não estamos a servir o Senhor?

Não devemos pensar que as profissões que estamos a exercer foram fruto do acaso, das circunstâncias ou das contingências socioeconómicas. É necessário entender as nossas ocupações como sendo o chamado de Deus para a nossa vida. Poderão não ser a única ocupação que Deus tem para nós. Ao longo da nossa vida, poderemos ser chamados por Deus para outras ocupações. Veja-se a vida de vários personagens bíblicos cujas vidas foram “interrompidas” por chamados de Deus para locais e ocupações diferentes. No entanto, apesar de muitas ocupações, a vocação é só uma: servir Deus e dar-lhe glória em e através de tudo o que fazemos, “sabendo que o nosso trabalho não é vão no Senhor” (I Coríntios 15:58)!

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