Mulher, a "ajudadora"
"O Senhor Deus disse ainda: - Não é bom que o homem esteja só; farei para ele uma ajudadora que seja semelhante a ele." - Génesis 2:18O texto acima refere-se ao momento em que Deus declara que não era bom que o homem estivesse só e que iria fazer uma companheira, semelhante a ele. Em Génesis 2:20 também lemos que, depois de dar os nomes a todos os animais terrestres, o homem verificou que não existia uma correspondente sua, à semelhança do que acontecia com os animais. Depois, segue-se a descrição de como Deus fez Adão dormir, para, do seu lado ou da sua "lateral"[1], criar a sua companheira que viria a ser chamada de Eva.
Pontos de vista
Génesis 2:18 e 20 lançam os alicerces para a compreensão da dinâmica do casal e, por consequência, da própria família, de acordo com os planos e propósitos divinos. Muitos acreditam que estes textos revelam que a intenção original de Deus foi a de estabelecer o homem como líder e criar a mulher, em função do homem, de modo a que esta o ajudasse a cumprir as tarefas de liderança e autoridade. Embora se possa considerar que estes textos acabam por alimentar um conjunto de pontos de vista maioritariamente machistas e misóginos de domínio masculino e subserviência feminina, reduzindo a mulher a uma mera servente, também importa referir que nem sempre esse é o caso. Muitos intérpretes bíblicos não vêm aqui uma declaração de superioridade masculina ou de depreciação feminina, mas uma dinâmica complementar de distribuição de funções e tarefas, as quais devem ser exercidas em respeito e amor mútuo. De acordo com esta posição, homem e mulher são criados diferentes, ainda que com igual valor e dignidade, com capacidades, possibilidades e finalidades diferentes, que se completam no casal. Assim, o homem assume uma posição de liderança e a mulher auxilia-o nessa tarefa, sendo-lhe submissa e respeitadora. Por seu turno, o homem não deve abusar da sua posição de autoridade, mas exercer a sua liderança em amor sacrificial e incondicional, para com a sua esposa. Acreditam que esta posição é consubstanciada por textos do Novo Testamento, como Efésios 5:22 "Vós, mulheres, sujeitai-vos a vossos maridos, como ao Senhor".
Além dos dois grandes pontos de vista acima descritos, importa também referir que existe uma quase infindável variedade de nuances de interpretação para o facto da mulher ser descrita como "ajudadora" (ou: "auxiliadora", "adjutora", etc) do homem. Os dois pontos acima descritos resumem um extremo mais agressivo de supremacia masculina, por um lado, e um ponto mais moderado e, tradicionalmente, mais associado às correntes doutrinárias complementaristas, na maioria das igrejas e comunidades identificadas como cristãs. Mas, apesar desse leque de sensibilidades interpretativas, o ponto em comum traduz-se no facto de que, se a mulher é "ajudadora", então ela foi criada em função do homem ("farei para ele") e o seu papel designado por Deus foi e deve ser o de auxiliar o homem nas suas tarefas, sendo-lhe, assim, tacita e funcionalmente subserviente. De acordo com esta gama de pontos de vista, homem e mulher não partilham das mesmas responsabilidades, nem tarefas, na medida em que a complementaridade entre ambos assim o determina.
Papéis
Esta forma de interpretar a criação da mulher de modo a ser a "ajudadora" do homem, tem sido o combustível, ao longo de séculos, para a teologia da distinção de papeis entre homens e mulheres, que não se limita ao contexto do casal/família, mas extravasa a todas as áreas da sociedade. Mesmo as posições mais moderadas, apesar de defenderem (na maior parte das situações) uma igualdade de valor, honra e dignidade entre homens e mulheres, atribuindo-lhes somente papéis diferentes, redundam numa completa negação da igualdade essencial e fundamental entre ambos. Afinal, ele foi criado para liderar e exercer autoridade e ela para ser um auxílio, um apoio, um suporte, uma adjuvante. Tradicionalmente, esta ajuda, auxílio ou apoio traduzem-se no facto das tarefas da mulher circunscreverem-se à criação dos filhos e ao cuidado das tarefas domésticas, "libertando" o homem para outros objetivos. Dirão que as diferentes funções são igualmente importantes e necessárias e que nada implicam em termos de valor intrínseco, nem dele, nem dela. Se assim não fosse Deus não teria criado desta forma, defendem. Mas essa parte da argumentação não é mais do que demagogia, para desviar o foco da real questão: o auxílio prestado é sempre em função da tarefa principal. Logo, não existe igualdade, equiparação, parceria ou sequer partilha, entre auxílio e tarefa principal, da mesma forma como não existe igualdade entre o que foi criado para a tarefa principal e o que foi criado para o auxiliar no cumprimento dessa tarefa. Aliás, faz parte da doutrina complementarista, negar ativamente o conceito da igualdade entre homem e mulher, exatamente por causa deste texto e outros que entendem estarem relacionados e servirem de fundamento a essa ideia.
Na prática, o ajudador que tem tarefas de suporte e assessoria é sempre subserviente, subalterno e submisso (submissão unidirecional). Não há real reciprocidade. E o contexto em que este auxílio ("em função de") acontece é sempre, inevitavelmente, hierárquico, que, aliás, é mais um dos pressupostos do complementarismo, no que diz respeito ao casal. Por um lado, existe o que lidera, ordena, conduz, decide e, pelo outro, o que obedece, segue, submete-se e acata. E o mais pernicioso neste ponto de vista é que nem sequer se contempla a possibilidade de intercambiar tarefas/funções. Ou seja, não existe qualquer possibilidade de, nuns momentos e circunstâncias, um liderar e o outro auxiliar, e, noutros momentos e circunstâncias, os papeis alternarem-se. Esta não é uma possibilidade porque entendem que os papéis estão indexados ao sexo e acreditam já ter ficado definido quem é que faz o quê, em função do outro e da sua tarefa. O que foi criado para auxiliar não partilha das mesmas tarefas e responsabilidades. Em vez disso, assume responsabilidades e tarefas distintas, cujo objetivo é permitir, facilitar, agilizar, habilitar e potenciar as tarefas do que é auxiliado - o líder.
Mas será que esta interpretação tradicional do papel da mulher, conforme definido no registo da Criação, está correta? Será que o próprio termo original, que é traduzido por "ajudadora", é corretamente traduzido e interpretado? Será que as várias versões traduzidas deste termo fazem justiça ao verdadeiro sentido do texto? Atendendo ao peso que esta linha complementarista de interpretação tem tido sobre as relações entre homens e mulheres, vale a pena explorar um pouco mais sobre este texto.
Ajudadora
Em Génesis 1:18 e 20, o termo hebraico que é traduzido como "ajudadora" é "ezer". A Strong's Concordance e a NAS Exhaustive Concordance definem o termo como "uma ajuda, ajudador"[2]. De facto, a maior parte das versões, quer em Português, quer em Inglês, traduzem esta palavra como "ajudadora" ou "auxiliadora", "a help" ou "helper". Então, se a palavra parece estar corretamente traduzida, importa verificar que outras utilizações ela tem ou em que outros contextos a mesma aparece, no texto bíblico, para melhor compreender o seu significado e interpretá-la corretamente. Podemos encontrar três contextos da sua utilização: dois de âmbito militar (com uma variante desta palavra, tendo a mesma raiz: "azar") e um referente a Deus.
- Josué 1:14 - "Vossas mulheres, vossos meninos e vosso gado fiquem na terra que Moisés vos deu deste lado do Jordão; porém vós passareis armados na frente de vossos irmãos, todos os valentes e valorosos, e ajudá-los-eis." Aqui, Josué dirige-se às tribos que iriam ficar a Leste do Jordão, mas que, antes de tomarem posse da sua terra, deveriam acompanhar as demais tribos, na conquista da terra, a Oeste do Jordão, e só depois regressar à terra que iriam ocupar. Importa verificar que a ajuda prestada por estas tribos não foi em subserviência ou de forma auxiliar, às restantes tribos. Em vez disso, como tinham caminhado, até àquele momento, juntos, em parceria, seria também dessa forma que iriam entrar na Terra Prometida. Uns não estavam a batalhar em função dos outros, mas todos lutaram da mesma forma, com as mesma armas, com os mesmos objetivos e propósitos.
- I Crónicas 12:1-22 - Este texto refere-se aos valentes de David e a vários combatentes que o auxiliaram nas suas conquistas militares, vindos voluntariamente de várias tribos. Embora este texto se refira a homens que ficaram sob a hierarquia militar de David, importa salientar que o texto também se refere a homens que eram e foram estabelecidos como líderes militares e que batalharam lado a lado, ombro-a-ombro, em pé de igualdade, com David, nas suas várias batalhas.
Nestes dois textos, importa referir que as tarefas atribuídas aos que "ajudaram" militarmente, não eram tarefas distintas, secundárias ou acessórias em relação às que os outros realizavam. Por outras palavras, os que vieram "ajudar" não se limitaram a limpar as armaduras, afiar as espadas e preparar as refeições para as tropas, de modo a facilitar e habilitar a tarefa dos que iriam, de facto, combater. Em vez disso, envolveram-se todos em todas as batalhas, lutaram as mesmas guerras, estiveram em todas as frentes, feriram os adversários comuns e derramaram sangue, como todos os demais.
- O terceiro contexto de utilização deste termo é em relação, nada mais, nada menos, do que ao próprio Deus. Textos como Salmo 33:20, 70:5, 115:9-11, 121:1-2 e tantos outros fazem uso do termo "ezer" para se referirem a Deus como sendo a nossa ajuda, o nosso ajudador, auxílio ou auxiliador. Nada poderia ser mais longe da verdade do que pensar que Deus existe para nos auxiliar nas nossas tarefas e responsabilidades. Ele não existem em função de nós. A verdade é exatamente o contrário disso. Nós é que lhe somos subservientes e a nossa vida é que deve ser vivida em função dele.
Estes três exemplos da utilização do termo "ezer" deixam claro que traduzi-lo e interpretá-lo no sentido da mulher ter sido criada, em função do homem, para o auxiliar ou assessorar numa função que é só dele, devendo ser-lhe subserviente e unilateralmente submissa resulta num reducionismo que nem o texto original, nem o seu contexto, respaldam. Então, se o texto não é suficiente para defender que o termo "ajudadora" resulta numa clara distinção de tarefas, sendo umas subsidiárias e acessórias da principal, de que forma o devemos entender? Para esta parte da investigação, devemos voltar-nos para outro termo usado.
Semelhante
Génesis 2:18 diz "... ajudadora que seja semelhante a ele." Esta partícula final "que seja semelhante a ele" resulta da tradução do termo hebraico "neged", o qual pode ser definido como "semelhante", "perante", "diante", "em oposição a", "correspondendo a"[3]. A raíz da palavra, "nagad", significa "ser conspícuo", "to stand boldly", ou seja, a denotação no original é "ousadamente lado a lado". "A palavra hebraica 'neged' (נֶגֶד) pode ser traduzida de várias maneiras, dependendo do contexto em que é usada. As traduções mais comuns incluem:
- Em frente a ou diante de: Usada para indicar algo que está posicionado diretamente à frente ou na presença de alguém ou algo.
- Contra: Pode ser usada para indicar oposição ou contraste.
- Correspondente a: Utilizada para indicar algo que está alinhado ou em correspondência com outra coisa."[4]
De acordo com o significado de "contraparte ou companheira", é legítimo concluir que o versículo não está a referir-se à criação de uma "ajudadora", no sentido de assistente, apoiadora, assessora, servente, secretária ou adjuvante, mas no sentido de uma parceira equivalente, numa relação de companheirismo ao mesmo nível, equiparado. A ideia de que a mulher é semelhante ao homem e de que lhe corresponde aponta para uma igualdade entre ambos, em vez de uma relação de subalternidade. Tratando-se de uma contraparte e companheira, estamos perante conceitos de equivalência, correspondência, equidade, equiparação e paridade, ou seja, igualdade! O termo salienta mais a equiparação do que a distinção, mais a equivalência do que a complementaridade, mais a igualdade do que a diferença.
A ideia de que Deus cria uma contraparte, uma parceira, em pé de igualdade com o homem, é consubstanciada pelo facto de que essa equiparação só é quebrada após a Queda. Depois de terem pecado, Deus declara à mulher que uma das consequências do pecado seria: "o teu desejo será para o teu marido, e ele te dominará". Ou seja, se a dinâmica de domínio surge depois da Queda, é legítimo considerar que, antes da Queda, essa dinâmica não existia sequer e prevalecia um equilíbrio equalitário entre homem e mulher.
O conceito de que homem e mulher foram criados iguais, ainda que com as diferenças anatómicas e fisiológicas que conhecemos [6] é reforçada pelo descrito em Génesis 1:27 "E criou Deus o homem à sua imagem; à imagem de Deus o criou; homem e mulher os criou." Neste primeiro capítulo de Génesis, onde se descreve a Criação da Humanidade de forma mais resumida (a qual é expandida e detalhada no capítulo 2), vemos como Deus se refere a ambos como tendo sido criados à Sua imagem. Nada em Adão é mais parecido com Deus, do que em Eva, nem vice-versa. Ambos têm a mesma identidade, a mesma essência, a mesma natureza. Neste único momento da História, pode falar-se em verdadeira igualdade entre homens e mulheres. É este o propósito divino. Mas levanta-se a questão: Será que foram criados para a mesma finalidade? É natural e evidente que existem funções biológicas que a mulher consegue realizar e o homem não, como a gestação de filhos. Também é possível considerar que o homem, devido à sua constituição física (de uma forma geral), poderá estar melhor equipado para tarefas que exijam maior força física. Mas será que estas diferenças anulam a igualdade, conforme designada por Deus? Será que estas diferenças resultam, necessariamente, numa distinção de tarefas tal que não possa haver partilha equiparada e igual? Será que estas diferenças são suficientes para determinar que o homem exerce autoridade e a mulher obedece, de forma a "auxiliá-lo" na sua liderança?
Liderança
Normalmente, a posição complementarista defende que foi dada, por Deus, a Adão a responsabilidade de liderar e Eva seria a sua ajudadora. Ou seja, a mulher teria tarefas subsidiárias e secundárias que permitiriam ao homem exercer o seu papel principal de liderar o lar (casal/família) e tudo o mais. Para este entendimento, fundamentam-se, principalmente em dois textos:
- Um encontra-se em Génesis 2:15-17 ("E tomou o Senhor Deus o homem, e o pôs no jardim do Éden para o lavrar e o guardar. E ordenou o Senhor Deus ao homem, dizendo: De toda a árvore do jardim comerás livremente, mas da árvore do conhecimento do bem e do mal, dela não comerás; porque no dia em que dela comeres, certamente morrerás."), no qual Deus dá instruções ao homem, para cuidar e guardar o Jardim e para não comer do fruto da árvore do conhecimento do bem e do mal, ainda antes da mulher ter sido criada. Como facilmente se compreende, não existe aqui qualquer indício de instruções para a liderança, já que ele nem tinha ainda ninguém (da sua mesma natureza) para liderar, muito menos um lar. A ordem dada por Deus tem mais a ver com serviço e cuidado material do Jardim, por um lado, e, por outro lado, com a necessidade de obedecer à ordem de não comer da árvore do conhecimento do bem e do mal.
- O outro texto encontra-se em Génesis 1:27-27 ("E criou Deus o homem à sua imagem; à imagem de Deus o criou; homem e mulher os criou. E Deus os abençoou, e Deus lhes disse: Frutificai e multiplicai-vos, e enchei a terra, e sujeitai-a; e dominai sobre os peixes do mar e sobre as aves dos céus, e sobre todo o animal que se move sobre a terra."), no qual Deus dá instruções de multiplicação da raça humana e de domínio desta sobre a Criação. Todavia, importa clarificar que estas instruções não foram dadas ao homem, mas sim a ambos! Se lermos com atenção, verificamos que Deus está a dar estes mandamentos ao resultado final da sua obra criadora, em especial, no que diz respeito à Humanidade. É evidente que só faria sentido Deus dar instruções sobre a multiplicação a ambos, porque os dois necessitariam estar envolvidos ativamente nessa tarefa. Mas, já não parece ser tão claro por que razão ambos recebem ordens para "sujeitar" e "dominar" a criação, se o homem é que deveria ser o líder e, consequentemente, ser o responsável por esse controlo e autoridade. Tal ordem, dada a ambos, não parece fazer sentido, a menos que o propósito de Deus fosse, efetivamente, atribuir a liderança de toda a criação a ambos, homem e mulher, em parceria, em igualdade, em partilha de autoridade. Se assim for, então fará todo o sentido considerar que a mulher é a "ajudadora" no homem, não no sentido de realizar tarefas distintas e acessórias, mas no sentido em que ela partilha a liderança, com ele. Neste sentido, a mulher é tão "ajudadora" do homem, como ele é "ajudador" da mulher.
Consequências do pecado
Importa referir que existe mais um texto, em Génesis, que os complementaristas mais extremos consideram também fundamentar a ideia de que o homem é que é o líder e a mulher serve-o como uma assistente ou assessora. Trata-se de Génesis 3:16 "E à mulher disse: Multiplicarei grandemente a tua dor, e a tua conceição; com dor darás à luz filhos; e o teu desejo será para o teu marido, e ele te dominará." De acordo com a interpretação que fazem deste texto, o homem é que deve ser o líder, porque a mulher tem uma posição de "anseio" ou "desejo" por ele e é ele quem a deve "conduzir". É necessário deixar claro que este texto refere-se ao momento em que Deus declara as consequências do pecado, que tinha acabado de entrar na Humanidade, no momento que ficou conhecido como a Queda. O que é descrito neste texto não é, nem de perto, nem de longe, o propósito ou vontade original de Deus, para o relacionamento entre homens e mulheres! Não só isso, mas este texto também não descreve o cenário redentivo que o Evangelho vem permitir e que se pretende que seja implementado. Em Génesis 3, do versículo 16 a 19, temos uma descrição sumária das consequências materiais ou físicas do pecado:
É importante clarificar o seguinte:
- Em primeiro lugar, nenhuma destas consequências corresponde ao propósito inicial de Deus.
- Em segundo lugar, ao declarar estas sentenças, Deus não está a dizer que agora é assim que deveria ser, mas sim que, a partir daquele momento, é assim que seria. E esta distinção faz toda a diferença. Sem dúvida que é Deus quem está a determinar que assim passaria a ser, mas esta determinação só acontece em resultado da presença do pecado. Por outras palavras, estas declarações também não correspondem a um propósito secundário ou de recurso, por parte de Deus.
- Em terceiro lugar, apesar de toda esta descrição daquilo que o pecado iria provocar na Humanidade, Génesis 3:15 já dá uma nota de esperança, ao apontar para a semente da mulher que viria esmagar a cabeça da serpente. Este facto significa que o estado de coisas descritas por Deus, em sequência da Queda, não era o desejável e Ele próprio já tinha tomado a iniciativa de prover o necessário para reverter esses efeitos do pecado.
- Em quarto lugar, se esta descrição correspondesse à forma como Deus queria ou desejava que as coisas passassem a ser depois da Queda, então Ele condenaria qualquer tentativa de reverter a situação descrita. Ou seja, por exemplo, Deus condenaria os nossos esforços para facilitar o nosso trabalho, para aliviar as dores (do parto e do trabalho) ou para cuidar do planeta, o que não é o caso.
- Em quinto lugar, o Evangelho vem reverter e redimir todas as consequências do pecado. De entre estas, como é natural, a mais importante é a morte eterna. Mas não é só isso que o Evangelho redime! Redime tudo o que foi contaminado pelo pecado e afetado pelas suas consequências, conforme descrito acima. Um dos exemplos desta redenção encontra-se em Gálatas 3:28 "Não há judeu nem grego, escravo nem livre, homem nem mulher; pois todos são um em Cristo Jesus.", texto que não se esgota no sentido do acesso à graça da salvação, mas abrange toda a nova vida "em Cristo Jesus".
Portanto, usar Génesis 3:16, para fundamentar a exclusiva liderança masculina e a necessária "assessoria" feminina não é só má hermenêutica e exegese. É heresia machista e misógina, que agride não só a vontade e propósito divinos originais, como os propósitos de redenção do próprio Evangelho!
A ordem da Criação
Na análise dos textos de Génesis, alguns defendem que a ordem da Criação é determinante. Argumentam algo do género: "O homem foi criado primeiro do que a mulher. Por isso, tem primazia e preponderância. Logo, tem que ser o líder." Importa distinguir entre ordem cronológica e ordem lógica. A ordem cronológica refere-se ao momento em que as coisas acontecem, enquanto que a ordem lógica refere-se, entre outros aspetos, à forma como essas coisas se relacionam e interagem entre si. A primeira não implica, nem resulta na outra. Ou seja, a ordem cronológica (homem criado primeiro do que a mulher) não significa, necessariamente, que tenham que ser retiradas ilações quanto à sua ordem lógica (o homem é o líder e a mulher é a liderada). No limite, se a ordem cronológica da Criação implicasse qualquer consequência do ponto de vista lógico, então tudo o que tinha sido criado antes do homem e da mulher, teria obrigatória primazia lógica sobre eles (Terra, Sol, Lua, estrelas, árvores, animais, etc). E, caso tal fosse verdade, Deus não teria ordenado à Humanidade que dominasse e sujeitasse toda essa mesma Criação.
Em relação à defesa de que a mulher não pode ensinar nem dominar o homem, por causa da ordem (cronológica) da Criação, de acordo com I Timóteo 2:12-13 "Não permito, porém, que a mulher ensine, nem use de autoridade sobre o marido, mas que esteja em silêncio. Porque primeiro foi formado Adão, depois Eva.", sugiro a leitura do artigo que consta nesta ligação: https://vidaemabundancia.blogspot.com/2024/05/porque-primeiro-foi-formado-adao-depois.html. Em resumo, clarifico que existe uma elevada probabilidade dessa instrução ter sido dada, por Paulo, para combater heresias que existiam em Éfeso, no tempo de escrita da sua carta. Desta forma, Paulo não está a extrair consequências lógicas da ordem cronológica, mas simplesmente a retificar um ensino deturpado.
Destino
Uma outra objeção à igualdade entre homens e mulheres que alguns apresentam é o conceito de destino ou propósito da criação da mulher, com base na palavra "para". Os objetores da igualdade dirão algo como: "A mulher foi criada, por Deus, para o homem. Logo, o texto mostra que a sua existência é por causa do homem, é em função dele.". Na realidade, a partícula "para" não consta no texto original. No hebraico lemos algo semelhante a "eeseh lo ezer neged", o que se pode traduzir literalmente por algo semelhante a "farei ele ajudadora adequada". Existem duas grandes possibilidades de tradução para este texto. Uma seria "farei para ele uma ajudadora adequada" ou algo equivalente. Outra seria "farei uma ajudadora que lhe seja adequada" ou alguma variação aproximada. A primeira forma de traduzir dá a entender um "destino" atribuído à mulher, aquando da sua criação. A segunda não contem esse sentido e simplesmente enfatiza a ideia de que a mulher seria correspondente, adequada ou equivalente ao homem.
Nas cerca de 40 traduções em inglês consultadas para este artigo, 9 escolhem a segunda opção e as restantes optam pela primeira. Nas 12 versões portuguesas consultadas, somente 1 opta por uma variante da segunda forma de traduzir. Do ponto de vista da tradução, não fica completamente claro se Deus criou uma mulher "para o homem" ou se criou uma mulher "para lhe ser equivalente". Por tudo o que já foi descrito, penso ter ficado claro que, mesmo que a opção de tradução seja a primeira, o termo "para" (incluído em algumas traduções) não significa que a mulher fosse "destinada" a ser atribuída ao homem, como se de uma propriedade se tratasse, tendo sido criada em função dele, ou que se destinasse a ser uma figura de apoio e auxílio subsidiário. Aliás, se assim fosse, que sentido teria a existência de uma mulher que não fosse casada?
Domínio
Um outro aspecto que tem sido alvo de debate, no que diz respeito à interpretação do registo de Génesis, relativo à criação do homem e mulher é o momento em que Adão atribui o nome à mulher. Defendem alguns que: "Adão foi quem deu o nome de Eva à mulher e isso demonstra autoridade e liderança." Quem defende esta linha de raciocínio, frequentemente, faz ligação com Génesis 2:20 "E Adão pôs os nomes a todo o gado, e às aves dos céus, e a todo o animal do campo; mas para o homem não se achava ajudadora idônea.", onde Adão surge a nomear todos os animais, como evidência do seu exercício de domínio e liderança sobre a Criação. Ora, argumentam, se ele deve sujeitar a Criação e um dos primeiros passos é nomear os animais, então, ao nomear Eva, está simplesmente a continuar esse seu exercício de liderança e autoridade. Verifica-se, assim, por parte dos defensores desta lógica, a criação artificial e arbitrária de uma maior equiparação entre os animais e a mulher, do que entre o homem e a mulher, o que contraria, em absoluto toda a lógica da criação de homem e mulher. No fundo, esta linha de raciocínio está na génese de grande parte da opressão e repressão vivida pelas mulheres, ao longo dos tempos, e que era tão evidente, por exemplo, no tempo de Jesus. Em diversos contextos, a esposa era entendida como sendo uma mera propriedade do marido.
É preciso referir que o momento descrito em Génesis 3:20, em que Adão atribui o nome de Eva, à mulher, acontece logo a seguir à descrição das consequências do pecado, depois da Queda. Portanto, não é claro que, caso o pecado não tivesse entrado na Humanidade, Adão tivesse, ainda assim, atribuído o nome à mulher. Tratando-se de um episódio ocorrido depois da Queda, em vez de vermos aqui a continuação do exercício de domínio sobre a Criação, conforme determinado por Deus, estamos perante aquele que pode ser considerado o primeiro ato de dominação de Adão, sobre a esposa, conforme descrito nas consequências do pecado. Ou seja, aquilo que alguns consideram como uma demonstração da liderança masculina, não será mais do que a primeira evidência da opressão masculina sobre a mulher, em consequencia da Queda. Opressão esta que resulta diretamente da presença e ação do pecado na Humanidade e da consequente transformação de uma parceria, numa hierarquia.
Conclusão
Se homem e mulher são ambos criados à imagem e semelhança de Deus e se ambos recebem a ordem para sujeitar a Terra e dominar sobre toda a Criação, nenhum deles foi criado em função do outro, de forma unilateral. Ambos foram feitos um para o outro. Eles não têm tarefas principais e secundárias. Ele não foi criado para ficar à frente, com ela na retaguarda. Ambos partilham, em parceria e companheirismo, as mesmas tarefas. A liderança é de ambos, é para ser partilhada e ambos têm a responsabilidade de ajudar o outro. É certo que, em alguns momentos e circunstâncias, terão possibilidades e capacidades diferentes. Mas tal não invalida a sua igualdade. As suas tarefas não são hierarquizadas, são partilhadas.
Embora toda a descrição de Génesis seja usada para extrair conclusões aplicáveis a toda a Humanidade, no que diz respeito às relações entre homens e mulheres, é útil também clarificar que grande parte do que se pode aprender com este registo aplica-se, em primeiro lugar, à família, ao casal. À parte das tarefas que estão biologicamente definidas e que são distintas, nada impede que cada casal encontre o seu próprio equilíbrio de vivência familiar. A liderança do lar é partilhada, em sujeição mútua, por ambos, em parceria. É possível encontrar áreas ou assuntos em que cada um terá melhores aptidões para liderar. É possível ser sensível a momentos em que um ou outro estará mais habilitado a conduzir o lar. É possível cada casal definir como melhor se articula e se equilibra, de acordo com as circunstâncias. Decisões sobre quem trabalha, quem fica em casa, quem cuida dos filhos, quem cuida das tarefas domésticas, quem faz isto e quem faz aquilo, têm que ser tomadas em partilha, em parceria, em reciprocidade, em igualdade.
Deus não criou o homem para liderar e a mulher para auxiliar. Deus criou ambos para partilharem a liderança e se auxiliarem mutuamente. O que prejudica e dificulta esta dinâmica, equilíbrio e igualdade chama-se pecado. E este está sempre presente. Ora num sentido mais abrangente, a partir do momento da Queda, ora cada vez que se procura perpetuar o status quo definido e condicionado por essa mesma Queda, através de doutrinas que não defendem e até reprovam e censuram a igualdade entre homens e mulheres.
[1] A palavra hebraica "tsela" é traduzida como "costela", na maior parte das traduções de Génesis 2:21-22. No entanto, é mais comumente traduzida por "lado", "flanco" ou "lateral", na maioria das suas ocorrências, no Antigo Testamento. Enquanto que a tradução como "costela" acontece por duas vezes, a tradução pelos outros termos indicado, ocorre cerca de 40 vezes.
[2] Strong's Concordance e NAS Exhaustive Concordance
[3] Strong's Concordance e NAS Exhaustive Concordance
[4] OpenAI. (2024). Resposta gerada pelo ChatGPT em 27 de junho de 2024
[5] Strong's Concordance e NAS Exhaustive Concordance
[6] A discussão sobre a igualdade entre homens e mulheres não abrange as impossibilidades fisiológicas e anatómicas de cada sexo.
Outras referências:
https://www.christianitytoday.com/ct/2022/october-web-only/ajudadora-mulheres-cristas-lideranca-antigo-testamento-pt.html
Muito interessante, Rubem.
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Vi que você é de Portugal, então não temos como chegar até vocês... mas os materiais do Culto Infantil são digitais e tem alcance em todo o mundo nos países de língua portuguesa.
Abraços. Que Deus abençoe.