Proibição do pastorado feminino?
Será que as proibições de Paulo, dirigidas a Timóteo, registadas em I Timóteo 2:12 significam que a mulher não pode exercer o ministério pastoral? Por outras palavras, será que, ao dizer "Não permito, porém, que a mulher ensine, nem use de autoridade sobre o marido, mas que esteja em silêncio.", Paulo está a proibir a mulher de ser pastora? Como facilmente se percebe, o texto de Paulo não proíbe expressa e literalmente o pastorado feminino, uma vez que nem sequer esse ministério ou "ofício", como alguns o chamam, é referido. Em vez disso, refere-se a três atividades (o ensino, o exercício de autoridade e o manter-se em silêncio), sendo as duas primeiras identificadas, por alguns, como fazendo parte do conteúdo funcional do ministério pastoral [1]. Com base neste ponto de vista, a proibição para o ministério pastoral feminino, ainda que não esteja literalmente expressa, está subjacente e subentendida, advogam.
Um dos principais argumentos de quem usa este texto como pedra basilar para proibir o pastorado feminino é o facto de Paulo fazer referência à "ordem da Criação", no versículo 13, deste mesmo capítulo. Entendem que esta referência deixa claro que não estamos perante uma proibição circunscrita aos destinatários originais, mas sim uma proibição universal, aplicável a todos os tempos, em todas as culturas e circunstâncias [2]. Assim, como a proibição de Paulo tem a sua raiz numa "ordem" estabelecida antes de qualquer outra instituição (ex: povo Judeu, igreja) e até antes da entrada do pecado na Humanidade, funciona como uma norma global, definitiva e permanente, que universaliza as proibições que lhe estiverem associadas. Assim, entendem que a consagração da mulher ao ministério pastoral constitui uma violação da vontade divina, na medida em que essa mesma vontade ficou universalmente estabelecida, no Génesis, aquando da Criação do homem e da mulher. Por este princípio, a "ordem da Criação" acaba por ser o elemento determinante, para proibir as mulheres de "ensinarem", de "exercerem autoridade sobre homens" e para que se "mantenham em silêncio", argumentam.
Circunscrição
Alguns apressam-se a "clarificar" que a proibição é de aplicação circunscrita ao contexto da igreja local e somente quando esta está congregada. Todavia, se a razão principal para aplicarem estas proibições ainda hoje, é o facto de estarem indexadas à "ordem da Criação", não há como restringi-las somente aos momentos em que a igreja está reunida. Ou é de aplicação universal ou não é. O próprio contexto de I Timóteo 2:12 não é exclusivo do ambiente da "igreja congregada", na medida em que, o versículo 8 é muito claro a prescrever comportamentos para serem aplicados "em todo o lugar": "Quero, pois, que os homens orem em todo o lugar, levantando mãos santas, sem ira nem contenda.". Portanto, se defendem que circunscrever estas proibições somente àquela igreja, naquele contexto, é uma interpretação artificial, por não existirem elementos no texto que a justifiquem, então circunscrevê-las aos momentos em que a igreja está congregada também é igualmente artificial e completamente desprovida de fundamento textual. Ou será que defendem também que o texto que prescreve a indumentária e adornos femininos e que se encontra logo a seguir (I Timóteo 2:9-10 - "Que do mesmo modo as mulheres se ataviem em traje honesto, com pudor e modéstia, não com tranças, ou com ouro, ou pérolas, ou vestidos preciosos, mas (como convém a mulheres que fazem profissão de servir a Deus) com boas obras.") também se aplica somente aos momentos em que a igreja está congregada?!
Vejamos este capítulo em mais detalhe, a partir do versículo 8:
"⁸ Quero, pois, que os homens orem em todo o lugar, levantando mãos santas, sem ira nem contenda.
⁹ Que do mesmo modo as mulheres se ataviem em traje honesto, com pudor e modéstia, não com tranças, ou com ouro, ou pérolas, ou vestidos preciosos,
¹⁰ Mas (como convém a mulheres que fazem profissão de servir a Deus) com boas obras.
¹¹ A mulher aprenda em silêncio, com toda a sujeição.
¹² Não permito, porém, que a mulher ensine, nem use de autoridade sobre o marido, mas que esteja em silêncio.
¹³ Porque primeiro foi formado Adão, depois Eva.
¹⁴ E Adão não foi enganado, mas a mulher, sendo enganada, caiu em transgressão.
¹⁵ Salvar-se-á, porém, dando à luz filhos, se permanecerem com sobriedade na fé, no amor e na santificação."
Todos os trechos que circundam o versículo 12 e que estão sublinhados destacam instruções que, claramente, não se limitam aos momentos da igreja congregada. Ou seja, todo o texto é sobre uma vivência e uma maneira de estar e ser que extravasa o âmbito circunstancial das reuniões da igreja. Por que razão, então, os versículos 12, 13 e 14 seriam exclusivos dos momentos congregacionais? Se admitirmos que estes três versículos se circunscrevem aos momentos em que a igreja está reunida, teremos que admitir também que, fora deles, estas instruções não se aplicam. Ou seja, fora do contexto da igreja congregada, a mulher pode ensinar, pode exercer autoridade sobre os homens (incluindo o marido) [3] e pode ser alvoroçadora! Embora alguns defendam que é "quase isso", porque fora da igreja elas podem ensinar e exercer cargos de liderança, não há como contornar o facto de que esta é uma interpretação que não encontra base no registo bíblico.
Em resumo, Paulo fala sobre a oração dos homens, os trajes e comportamento das mulheres, a aprendizagem das mulheres, as proibições dirigidas às mulheres, a ordem da Criação, o engano da mulher e a Queda e a salvação da mulher, pela fé, num contexto de gestação de filhos. Nada existe neste texto, para indicar que o versículo 12, em particular, é unicamente aplicável aos momentos em que a igreja está reunida. Aliás, nenhuma das atividades proibidas nesse texto é sequer exclusiva do contexto da igreja. Não é só no contexto da igreja que a mulher ensina. Não é só no contexto da igreja que a mulher exerce autoridade. Não é só no contexto da igreja que a mulher não permanece em silêncio. Portanto, defender a sua aplicação a todos os tempos, contextos e culturas, mas limitá-lo à "igreja congregada" é um artificialismo fabricado por pressupostos tradicionalistas, que nada têm de bíblico.
Em síntese, se se tratam de proibições aplicáveis a todos os tempos, a todas as culturas e contextos, então, não há como restringi-las às reuniões da igreja. Afinal, a "ordem da Criação" não é um argumento que se restrinja às reuniões da igreja, certo? Se estamos perante uma "ordem" tão basilar e elementar, definida no início da existência da Criação da própria Humanidade, como não a aplicar a toda a Humanidade?! Que cambalhota de incoerência temos que fazer para dizer que "é universal", "mas só para esta circunstância"? Que tipo de desonestidade intelectual estamos dispostos a aceitar e a defender, para fazer valer este tipo de hermenêutica arbitrária e dualista? É neste tipo de contradições que, invariavelmente, redundam as posições legalistas, que se socorrem de critérios de interpretação à la carte.
Espectro
Entre os opositores do pastorado feminino, que usam este texto de I Timóteo 2 para defender a sua posição, encontramos um vasto leque de sensibilidades e aplicações. Digamos que existe um largo espectro de abordagens e aplicações desta proibição. Alguns entendem que, apesar do texto dizer que a mulher não deve ensinar, nem exercer autoridade, ela só não pode ter o título de Pastora. Estes até aceitam e convidam mulheres para pregarem e ensinarem, desde que não tenham o título de "Pastora". Outros há que levam estas proibições mais longe e proíbem a mulher, de facto, de ter qualquer participação sonora, nos momentos em que a igreja está congregada. Seguindo esta linha de interpretação literalista e descontextualizada, existem aqueles que ainda defendem, por exemplo, que a mulher deve usar véu, nos tais momentos da "igreja reunida". Ainda mais para esse extremo, vamos também encontrar os que levam estas proibições até às suas últimas consequências e entendem que se aplicam a todo e qualquer contexto e circunstância, quer dentro, quer fora da igreja, remetendo a existência da mulher ao recôndito do lar.
Curiosamente, cada um dos defensores da sua fatia do espectro acha que é que está certo e é mais bíblico do que os outros. Os que defendem que a mulher só não pode ter o título de Pastora, mas permitem-lhe toda a forma de participação ativa nas reuniões da igreja entendem ser mais "moderados" na sua abordagem. Apesar de ser absolutamente impossível defender a proibição de usarem o título de "Pastoras", com base num texto que não fala sobre títulos, mas sobre atividades, acham que assim conseguem manter uma posição de equilíbrio entre a literalidade bíblica e as permissões para a participação feminina que, afinal, encontram em todo o Novo Testamento. No entanto, esta fração do espectro é a que menos honra dá ao texto bíblico. Se um texto que manda "não ensinar" e "não exercer autoridade", serve para proibir o pastorado, mas continua a permitir, por exemplo o ensino (se não tiver o título de "pastora"), que força tem, de facto, este texto e as suas proibições? Apesar destes parecerem os mais ponderados, infelizmente, são os mais incoerentes, porque acabam por defender uma proibição que literalmente não existe (atribuição do título de "pastora") e permitir uma atividade que está literalmente proibida (o ensino). É como se dissessem: "O texto proíbe o ensino e a autoridade. Por isso, não pode ser pastora. No entanto, pode ensinar e exercer autoridade, se não for como pastora." Este tipo de manipulação arbitrária e artificial do texto resulta, invariavelmente, numa doutrina e prática, cuja "regra" é tudo o que se quiser, menos Bíblia.
Outras fatias do espectro, que mais se aproximam do extremo, não são isentas das suas próprias incoerências. Se aceitarmos que as proibições de I Timóteo 2 são universais e aplicáveis hoje, teremos também que aceitar que outras proibições dirigidas às mulheres, como as da primeira carta aos Coríntios, no capítulo 11, estando em harmonia com I Timóteo 2:12, também são de aplicação universal. Ou seja, teremos que admitir que a proibição de que as mulheres "falem", encontrada em I Coríntios14:34 "As vossas mulheres estejam caladas nas igrejas; porque não lhes é permitido falar; mas estejam sujeitas, como também ordena a lei." também é igualmente universal e aplicável hoje. Isto significa que se encontra universalmente vedado à mulher a emissão de quaisquer sons verbais ("falar"), pelo menos no contexto da igreja. Além deste texto, I Coríntios 11, no qual é referido que a mulher deveria usar véu, ao orar em público ou ao profetizar, também faz uso da famigerada "ordem da Criação", quando, nos vrs.8-9 lemos: "Porque o homem não provém da mulher, mas a mulher do homem. Porque também o homem não foi criado por causa da mulher, mas a mulher por causa do homem." Ora, se a referência à "ordem da Criação", em I Timóteo 2:13 tem um caráter universalizador das proibições, então esse mesmo critério tem que ser aplicado em I Coríntios 11, pela mesma referência à "ordem da Criação". Pelo princípio de coerência interpretativa, teremos assim que admitir que a prescrição do uso de véu também tem que ter uma aplicação universal. Portanto, mesmo os que proíbem a mulher de ser pastora e não permitem que ela ensine ou pregue, arrogando serem mais bíblicos e coerentes do que os anteriormente descritos, demonstram a sua incoerência quando permitem que a mulher não use véu, cante, dirija o louvor, ore em público ou emita qualquer som oral, depois do prelúdio e antes do poslúdio.
No extremo do espectro, encontramos os que defendem uma efetiva literalidade e universalidade das proibições bíblicas, vedando toda e qualquer participação ou intervenção da mulher, quer no contexto da igreja, quer fora dele. Felizmente, não são uma fatia assim tão grande, mas que os há, há! Antes de mais nada, quero deixar absolutamente claro que acredito que esta é uma interpretação e aplicação absurdas do texto bíblico e que em nada honram o seu sentido. No entanto, é incontornável e inevitável a constatação de que estes são os mais coerentes de todos! Estão errados. Mas são coerentes! Se recorrem à interpretação literalista e descontextualizada das Escrituras, é natural que têm que aplicar os seus preceitos mediante a técnica do decalque. Ou seja, se diz para não ensinar, ela não ensina. Se diz para não exercer autoridade, ela não exerce autoridade. Se diz para ficar em silêncio, ela fica em silêncio. Se diz para não falar, ela não fala. Se diz para usar véu, ela usa véu.
Conclusão
Alguns argumentarão que não podemos ser extremistas e não podemos ver este assunto sob o ponto de vista do "tudo ou nada". Defendem que uma posição equilibrada, moderada e temperada é a melhor solução para respeitar o registo bíblico. No entanto, aquilo que consideram como equilíbrio e moderação não é mais do que uma retórica oca e desligada do mesmo registo bíblico que dizem defender. O texto bíblico exige uma tomada de posição clara, que ou aceita a literalidade de tudo, com aplicação literal hoje, ou admite que fatores do contexto original do texto não permitem a sua aplicação atual. Enquanto defendem uma posição que "não é carne, nem é peixe", sob o pretexto de moderação, alimentam uma teologia "morna" (entenda-se vomitável), insípida e obscura.
Em bom rigor, a Bíblia nunca proíbe o pastorado feminino. Proíbe uma série de atividades e comportamentos que alguns entendem serem condição sine qua non, para esse pastorado. Mas a proibição não é em relação a um ministério, a um "ofício", a um cargo ou a um título. As proibições referem-se a ações, tarefas, atos. Não há como manter alguma coerência interpretativa e honestidade intelectual sem fazer esta distinção: o que está a ser proibido não é um título, mas sim atividades! Portanto, servir-se das proibições existentes, para justificar a não atribuição de um título e, ao mesmo tempo, continuar a permitir o exercício das atividades "proibidas" é uma postura hipócrita, cínica e manipuladora. Ou existem proibições e as mesmas devem ser aplicadas, por inteiro, universalmente, tal e qual estão descritas - e, nesse caso, é necessário ter a coragem de as levar até às suas últimas consequências. Ou as proibições e limitações tiveram contextos próprios, que não se verificam hoje e, por essa razão, já não se aplicam - e, neste caso, não há como proibir o ministério pastoral feminino.
[1] No seguinte artigo, discuto a forma como o "ensino" e o "exercício de autoridade" são duas atividades distintas, bem como facto da "autoridade" a que Paulo se refere ser uma autoridade que podemos classificar de abusiva ou dominadora: https://vidaemabundancia.blogspot.com/2013/04/consagracao-feminina-ao-pastorado-i.html
[2] No seguinte artigo, discuto a possibilidade da referência à "ordem da Criação" não ser para universalizar as limitações referidas por Paulo, mas para combater e corrigir o ensino errado que estaria a ser propagado na igreja de Éfeso: https://vidaemabundancia.blogspot.com/2024/05/porque-primeiro-foi-formado-adao-depois.html
[3] No seguinte artigo, discuto a forma como a sujeição, no contexto da igreja e, por consequência, no lar, nunca é unidirecional, mas sim sempre recíproca: https://vidaemabundancia.blogspot.com/2022/10/o-paradoxo-da-sujeicao-mutua.html
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