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A igreja Para Além Dos Limites

Imagem de: https://teakisi.com/
Há quase 20 anos atrás, numa aula de Eclesiologia (doutrina da igreja), o professor apresentou uma fotografia de si próprio em que, qual contorcionista de circo, fazia passar as pernas por cima da cabeça e perguntou, “acreditam que eu consigo fazer isto?” Depois da gargalhada geral, prosseguiu para o que considerei ser um dos mais importantes desafios que me foram colocados durante o meu tempo no Seminário: considerar A IGREJA PARA ALÉM DOS LIMITES.

No decurso da história da igreja (e de cada igreja), construíram-se espaços e conceberam-se estruturas litúrgicas e organizacionais que, adequadamente, possibilitaram e reforçaram o desenvolvimento da sua missão. Com o decorrer do tempo, porém, sedimentaram-se organizações, instalaram-se hábitos, acomodaram-se pessoas e aquilo que antes era inovador torna-se, gradativamente, numa tradição. Em algumas situações, o meio tornou-se o fim.

A igreja vê a sua vida, assim, limitada por elementos que, de forma quase impercetível, adquiriram estatuto de imutabilidade, oferecendo rigidez e obstáculos onde deviam cumprir o seu primeiro objetivo: auxiliar e potenciar.

Urge, portanto, um esforço consciente de transformação da mente, no sentido de recuperar uma vivência para além dos limites, de acordo com o padrão bíblico.


O TEMPLO.

A nossa sociedade está habituada a ver a igreja como o templo. Fruto da tradição religiosa, o edifício é identificado com a igreja e vice-versa. Exemplo disso é a expressão “Vamos à igreja!” quando, em bom rigor, queremos dizer, “Vamos às instalações da igreja”.

Mais do que uma mera desarrumação de conceitos, em muitas igrejas, o templo (instalações) é, mesmo, sobrevalorizado. Olhemos para os orçamentos anuais das nossas igrejas e analisemos a percentagem dos nossos recursos que é gasta em manutenção e melhorias das instalações, em comparação com o que gastamos, por exemplo, em Missões ou no atendimento de necessidades das pessoas.

Não estou com isto a dizer que é errado ter templos ou que não devemos cuidar da sua manutenção. Temos tido o privilégio de beneficiar de ótimas instalações, resultado de investimento feito no passado, e pelas quais dou graças a Deus. Todavia, é importante manter um estado de vigilância contra a tendência natural de ver no edifício mais do que o que ele realmente é – um recurso. Este perigo leva, facilmente, a igreja a centrar a sua atenção em aspetos materiais da sua existência em detrimento de outros bem mais importantes.

Considero preocupante a forma como as pessoas se entusiasmam e mobilizam quando há obras, em contraste com outros momentos e assuntos como evangelismo e missões, estudo bíblico e, até mesmo, a oração. Quando isso acontece, estamos a permitir que os aspetos materiais, físicos e visíveis se sobreponham ao espiritual. A igreja desenvolve, então, uma visão deturpada da sua própria existência, limitada ao seu espaço físico, ao seu edifício.

Ver a igreja para além dos limites do templo, é perceber que não somos igreja somente quando estamos naquele espaço. Continuamos a ser igreja nos nossos lares, nos nossos trabalhos, nas nossas escolas e tempos livres. Era assim que viviam os cristãos primitivos, quando ainda não existiam templos cristãos. Viviam a sua fé, em cada momento, em cada espaço, em cada circunstância.

Por vezes, questiono-me sobre o papel que teve o imperador Constantino, ao pegar no cristianismo, esse movimento vibrante que permeava toda a sociedade, e confiná-lo aos templos, hoje e então, autênticos "buracos negros" de recursos financeiros. Mantenhamos em mente que, quando o Senhor avaliar as nossas obras, provavelmente não terá como prioridade a análise do nosso zelo para com paredes, tijolos ou mobília, mas sim para com pessoas, vidas. Nenhuma igreja sobrevive sem estas, mas passa muito bem sem aquelas.

A questão saliente é, hoje, a mesma que Estêvão, corajosamente, colocou aos seus executores: o Altíssimo não habita em templos feitos por mãos de homens (Atos 7:48).

Chegamos a aplicar desacertadamente textos como o de Eclesiastes 5:1 para ensinar uma espécie de reverência ao local físico, quando o ensino bíblico em I Timóteo 3:15 é claro: a casa de Deus é a igreja (pessoas).

Tenhamos a sabedoria de usar as instalações para a glória de Deus, como ponto de encontro e como recurso, mas nunca como espaço limitador da vida cristã, aprendendo a ser igreja para além dos limites do templo.


O CULTO.

O culto ou a celebração é um momento muito importante da vida da igreja, em que esta se reúne para adorar, aprender e interceder em conjunto. Este não é o momento de ser igreja. É o momento de celebrar ser igreja. O momento de ser igreja é todo o momento da nossa vida.

Por força da tradição religiosa do nosso país, fomos habituados a distinguir os momentos sagrados dos profanos, espirituais dos seculares. Distinguir o momento do culto como momento sagrado e espiritual na nossa vida reduz a vivência do cristianismo a um momento e cria a ilusão do dever cumprido pela simples presença no ato de culto.

Poucas coisas são mais redutoras da vida cristã. Infelizmente, na mente de muitos membros das nossas igrejas, ser igreja é participar no culto. É como se, ao cumprirmos esse dever, estivéssemos a creditar a conta que temos para com Deus. Nada poderia estar mais distante da realidade. Deus pretende que a vivência cristã da nossa fé seja integrada e integral, isto é, em todas as áreas e momentos, bem como de forma completa e sem limitações.

Depois, há toda a questão do modo como os cultos decorrem, de acordo com uma liturgia estabelecida na tradição e cujas modificações acontecem com um desfasamento considerável relativamente ao momento em que se impunham. Veja-se, a título de exemplo, a introdução de instrumentos musicais no culto, ao longo da história. Permitir que os momentos do culto estejam culturalmente contextualizados não é permitir que o mundo entre na igreja. Em primeiro lugar, porque, como já estabelecemos, a igreja não é o templo. Depois, porque o mundo não é o mesmo que os objetos. O mundo não deve entrar na igreja, na medida em que o cristão não deve permitir que os comportamentos, valores e princípios mundanos façam parte da sua vida. Por outro lado, a utilização de instrumentos musicais variados, novas tecnologias, dinâmicas inovadoras e a utilização de recursos que ajudem a criar um ambiente acolhedor não são cedências ao mundanismo, mas sim avanços contextualizados para melhor transmitir Deus e a Sua Palavra às pessoas do nosso tempo. Por que não promover um saudável desprendimento de ritualismo e aplicar os princípios de espontaneidade e participação de I Coríntios 14:26-ss, os quais não têm que ser, de modo algum, sinónimos de desordem?

Fundamentalmente, a igreja precisa entender a sua existência para além da realização de cultos, celebrações, reuniões ou eventos. A igreja não é um evento ou momento. É uma vivência integral e integrada, para além dos limites do culto.


O DOMINGO.

Apesar de se falar muito sobre o domingo como o dia do Senhor, parece-me que esta distinção de dias vem acrescentar à tendência de estabelecer espaços sagrados e profanos na nossa vida. Não temos base bíblica para chamar ao domingo o dia do Senhor (esta expressão, no Novo Testamento normalmente está associada à vinda de Jesus e não ao primeiro dia da semana). Pelo contrário, as Escrituras ensinam-nos que devemos considerar todos os dias como dias do Senhor. A nossa própria vida é sagrada, apesar de ser vivida num mundo secular.

Se constituirmos o domingo como “O” dia do Senhor, resta-nos, naturalmente, a pergunta: de quem são todos os outros dias da semana? O ensino de que devemos separar um dia para o Senhor passa a ideia enganosa de que os outros dias são nossos, para fazermos deles o que quisermos.

Paulo defende em Romanos 14:5 que não deve haver distinção relevante entre dias. Além disso, lemos no livro de Atos que os cristãos primitivos reuniam-se todos os dias. Naturalmente, isto não significa que, para sermos igreja, temos que nos reunir todos os dias. O contexto político, social e cultural determina grandemente a nossa vivência em igreja, como determinou a vivência da igreja primitiva. Contudo, ser igreja será, sempre, mais do que reunir num determinado dia ou num determinado local.

Suspeito que a atenção dada hoje ao domingo seja, em muito, semelhante ao zelo que os fariseus tinham para com o sábado. Não podemos limitar a vida da igreja a um dia da semana, através da sobrevalorização de um dia, em detrimento dos outros. Poderão dizer: “Mas as pessoas não vivem a sua fé em todos os dias de forma integral. Por isso, pelo menos que separem um dia na semana, para adorar a Deus.” Não me parece que o nosso Deus seja um Deus de “pelo menos”. Deus espera que a nossa entrega seja integral. Ensinar ou sustentar outra coisa menos do que isso é enganador e não honra as Escrituras. Todos os dias são do e para o Senhor! Ser igreja é entender que, em todos os dias, vivemos a nossa fé e existimos enquanto corpo de Jesus, para além dos limites do domingo.


O CLERO.

Deus coloca pastores e líderes nas igrejas (Efésios 4:11). Fá-lo porque o seu papel de liderança na igreja é essencial, pelo que o contrário não é biblicamente defensável, nem desejável. Contudo, é necessário que a igreja entenda que precisa existir para além do seu clero e que não se é igreja apenas quando o pastor está presente. Se é certo que os pastores são importantes catalisadores da vivência e desenvolvimento da igreja, também é certo que, por vezes, desenvolve-se uma castradora e doentia dependência dos mesmos, de tal forma que a igreja fica "à deriva" na sua ausência. Naturalmente, esta tendência é originária num desvio do foco que deve ser colocado em Jesus, como O Pastor da igreja.

Acredito que, com a melhor das intenções, os pastores e líderes acabam por centralizar em si mesmos uma série de atribuições e funções não lhes foram necessariamente atribuídas, mas sim à igreja. Por exemplo, será que uma igreja só pode realizar a Ceia do Senhor, se a mesma for dirigida por um pastor? Ou será que os batismos só podem ser realizados por pastores? A resposta bíblica a estas duas questões é não. Ambas estas ordenanças foram atribuídas à igreja e não ao ministério pastoral.

É por isso que, apesar de não considerar a designação “clero” como biblicamente adequada à igreja, aplico-a neste contexto. Porque temos, erroneamente, projetado para os nossos pastores um papel sacerdotal, quando, de acordo com o Novo Testamento (I Pedro 2:5,9), todos os crentes são sacerdotes perante Deus, não existindo distinção entre clero e leigos.

De uma forma mais abrangente, a função pastoral não é realizar o ministério da igreja, mas sim ajudar e capacitar todos para o exercício dos seus dons e ministérios na igreja (Efésios 4:12). Esta perspectiva, fundamentada nas Escrituras, vai mais além da tendência centralizadora a que por vezes assistimos, pois potencia uma vivência em igreja, na qual todos poderão e deverão estar ativamente envolvidos.

Os pastores e líderes têm, portanto, a responsabilidade de promover o desenvolvimento dos dons, para que toda a igreja possa desenvolver os diversos ministérios em dependência de Deus e não da função pastoral, para além dos limites do clero.


Termino com o contundente desafio de Paulo: "E não sede conformados com este mundo, mas sede transformados pela renovação do vosso entendimento, para que experimenteis qual seja a boa, agradável, e perfeita vontade de Deus" (Romanos 12:2), na expetativa de que sejamos motivados a uma verdadeira transformação e renovação da nossa maneira de pensar em relação à igreja.


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