A igreja Para Além Dos Limites

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Há quase 20 anos atrás, numa aula de Eclesiologia (doutrina da igreja), o professor apresentou uma fotografia de si próprio em que, qual contorcionista de circo, fazia passar as pernas por cima da cabeça e perguntou, “acreditam que eu consigo fazer isto?” Depois da gargalhada geral, prosseguiu para o que considerei ser um dos mais importantes desafios que me foram colocados durante o meu tempo no Seminário: considerar A IGREJA PARA ALÉM DOS LIMITES.

No decurso da história da igreja (e de cada igreja), construíram-se espaços e conceberam-se estruturas litúrgicas e organizacionais que, adequadamente, possibilitaram e reforçaram o desenvolvimento da sua missão. Com o decorrer do tempo, porém, sedimentaram-se organizações, instalaram-se hábitos, acomodaram-se pessoas e aquilo que antes era inovador torna-se, gradativamente, numa tradição. Em algumas situações, o meio tornou-se o fim.

A igreja vê a sua vida, assim, limitada por elementos que, de forma quase impercetível, adquiriram estatuto de imutabilidade, oferecendo rigidez e obstáculos onde deviam cumprir o seu primeiro objetivo: auxiliar e potenciar.

Urge, portanto, um esforço consciente de transformação da mente, no sentido de recuperar uma vivência para além dos limites, de acordo com o padrão bíblico.


O TEMPLO.

A nossa sociedade está habituada a ver a igreja como o templo. Fruto da tradição religiosa, o edifício é identificado com a igreja e vice-versa. Exemplo disso é a expressão “Vamos à igreja!” quando, em bom rigor, queremos dizer, “Vamos às instalações da igreja”.

Mais do que uma mera desarrumação de conceitos, em muitas igrejas, o templo (instalações) é, mesmo, sobrevalorizado. Olhemos para os orçamentos anuais das nossas igrejas e analisemos a percentagem dos nossos recursos que é gasta em manutenção e melhorias das instalações, em comparação com o que gastamos, por exemplo, em Missões ou no atendimento de necessidades das pessoas.

Não estou com isto a dizer que é errado ter templos ou que não devemos cuidar da sua manutenção. Temos tido o privilégio de beneficiar de ótimas instalações, resultado de investimento feito no passado, e pelas quais dou graças a Deus. Todavia, é importante manter um estado de vigilância contra a tendência natural de ver no edifício mais do que o que ele realmente é – um recurso. Este perigo leva, facilmente, a igreja a centrar a sua atenção em aspetos materiais da sua existência em detrimento de outros bem mais importantes.

Considero preocupante a forma como as pessoas se entusiasmam e mobilizam quando há obras, em contraste com outros momentos e assuntos como evangelismo e missões, estudo bíblico e, até mesmo, a oração. Quando isso acontece, estamos a permitir que os aspetos materiais, físicos e visíveis se sobreponham ao espiritual. A igreja desenvolve, então, uma visão deturpada da sua própria existência, limitada ao seu espaço físico, ao seu edifício.

Ver a igreja para além dos limites do templo, é perceber que não somos igreja somente quando estamos naquele espaço. Continuamos a ser igreja nos nossos lares, nos nossos trabalhos, nas nossas escolas e tempos livres. Era assim que viviam os cristãos primitivos, quando ainda não existiam templos cristãos. Viviam a sua fé, em cada momento, em cada espaço, em cada circunstância.

Por vezes, questiono-me sobre o papel que teve o imperador Constantino, ao pegar no cristianismo, esse movimento vibrante que permeava toda a sociedade, e confiná-lo aos templos, hoje e então, autênticos "buracos negros" de recursos financeiros. Mantenhamos em mente que, quando o Senhor avaliar as nossas obras, provavelmente não terá como prioridade a análise do nosso zelo para com paredes, tijolos ou mobília, mas sim para com pessoas, vidas. Nenhuma igreja sobrevive sem estas, mas passa muito bem sem aquelas.

A questão saliente é, hoje, a mesma que Estêvão, corajosamente, colocou aos seus executores: o Altíssimo não habita em templos feitos por mãos de homens (Atos 7:48).

Chegamos a aplicar desacertadamente textos como o de Eclesiastes 5:1 para ensinar uma espécie de reverência ao local físico, quando o ensino bíblico em I Timóteo 3:15 é claro: a casa de Deus é a igreja (pessoas).

Tenhamos a sabedoria de usar as instalações para a glória de Deus, como ponto de encontro e como recurso, mas nunca como espaço limitador da vida cristã, aprendendo a ser igreja para além dos limites do templo.


O CULTO.

O culto ou a celebração é um momento muito importante da vida da igreja, em que esta se reúne para adorar, aprender e interceder em conjunto. Este não é o momento de ser igreja. É o momento de celebrar ser igreja. O momento de ser igreja é todo o momento da nossa vida.

Por força da tradição religiosa do nosso país, fomos habituados a distinguir os momentos sagrados dos profanos, espirituais dos seculares. Distinguir o momento do culto como momento sagrado e espiritual na nossa vida reduz a vivência do cristianismo a um momento e cria a ilusão do dever cumprido pela simples presença no ato de culto.

Poucas coisas são mais redutoras da vida cristã. Infelizmente, na mente de muitos membros das nossas igrejas, ser igreja é participar no culto. É como se, ao cumprirmos esse dever, estivéssemos a creditar a conta que temos para com Deus. Nada poderia estar mais distante da realidade. Deus pretende que a vivência cristã da nossa fé seja integrada e integral, isto é, em todas as áreas e momentos, bem como de forma completa e sem limitações.

Depois, há toda a questão do modo como os cultos decorrem, de acordo com uma liturgia estabelecida na tradição e cujas modificações acontecem com um desfasamento considerável relativamente ao momento em que se impunham. Veja-se, a título de exemplo, a introdução de instrumentos musicais no culto, ao longo da história. Permitir que os momentos do culto estejam culturalmente contextualizados não é permitir que o mundo entre na igreja. Em primeiro lugar, porque, como já estabelecemos, a igreja não é o templo. Depois, porque o mundo não é o mesmo que os objetos. O mundo não deve entrar na igreja, na medida em que o cristão não deve permitir que os comportamentos, valores e princípios mundanos façam parte da sua vida. Por outro lado, a utilização de instrumentos musicais variados, novas tecnologias, dinâmicas inovadoras e a utilização de recursos que ajudem a criar um ambiente acolhedor não são cedências ao mundanismo, mas sim avanços contextualizados para melhor transmitir Deus e a Sua Palavra às pessoas do nosso tempo. Por que não promover um saudável desprendimento de ritualismo e aplicar os princípios de espontaneidade e participação de I Coríntios 14:26-ss, os quais não têm que ser, de modo algum, sinónimos de desordem?

Fundamentalmente, a igreja precisa entender a sua existência para além da realização de cultos, celebrações, reuniões ou eventos. A igreja não é um evento ou momento. É uma vivência integral e integrada, para além dos limites do culto.


O DOMINGO.

Apesar de se falar muito sobre o domingo como o dia do Senhor, parece-me que esta distinção de dias vem acrescentar à tendência de estabelecer espaços sagrados e profanos na nossa vida. Não temos base bíblica para chamar ao domingo o dia do Senhor (esta expressão, no Novo Testamento normalmente está associada à vinda de Jesus e não ao primeiro dia da semana). Pelo contrário, as Escrituras ensinam-nos que devemos considerar todos os dias como dias do Senhor. A nossa própria vida é sagrada, apesar de ser vivida num mundo secular.

Se constituirmos o domingo como “O” dia do Senhor, resta-nos, naturalmente, a pergunta: de quem são todos os outros dias da semana? O ensino de que devemos separar um dia para o Senhor passa a ideia enganosa de que os outros dias são nossos, para fazermos deles o que quisermos.

Paulo defende em Romanos 14:5 que não deve haver distinção relevante entre dias. Além disso, lemos no livro de Atos que os cristãos primitivos reuniam-se todos os dias. Naturalmente, isto não significa que, para sermos igreja, temos que nos reunir todos os dias. O contexto político, social e cultural determina grandemente a nossa vivência em igreja, como determinou a vivência da igreja primitiva. Contudo, ser igreja será, sempre, mais do que reunir num determinado dia ou num determinado local.

Suspeito que a atenção dada hoje ao domingo seja, em muito, semelhante ao zelo que os fariseus tinham para com o sábado. Não podemos limitar a vida da igreja a um dia da semana, através da sobrevalorização de um dia, em detrimento dos outros. Poderão dizer: “Mas as pessoas não vivem a sua fé em todos os dias de forma integral. Por isso, pelo menos que separem um dia na semana, para adorar a Deus.” Não me parece que o nosso Deus seja um Deus de “pelo menos”. Deus espera que a nossa entrega seja integral. Ensinar ou sustentar outra coisa menos do que isso é enganador e não honra as Escrituras. Todos os dias são do e para o Senhor! Ser igreja é entender que, em todos os dias, vivemos a nossa fé e existimos enquanto corpo de Jesus, para além dos limites do domingo.


O CLERO.

Deus coloca pastores e líderes nas igrejas (Efésios 4:11). Fá-lo porque o seu papel de liderança na igreja é essencial, pelo que o contrário não é biblicamente defensável, nem desejável. Contudo, é necessário que a igreja entenda que precisa existir para além do seu clero e que não se é igreja apenas quando o pastor está presente. Se é certo que os pastores são importantes catalisadores da vivência e desenvolvimento da igreja, também é certo que, por vezes, desenvolve-se uma castradora e doentia dependência dos mesmos, de tal forma que a igreja fica "à deriva" na sua ausência. Naturalmente, esta tendência é originária num desvio do foco que deve ser colocado em Jesus, como O Pastor da igreja.

Acredito que, com a melhor das intenções, os pastores e líderes acabam por centralizar em si mesmos uma série de atribuições e funções não lhes foram necessariamente atribuídas, mas sim à igreja. Por exemplo, será que uma igreja só pode realizar a Ceia do Senhor, se a mesma for dirigida por um pastor? Ou será que os batismos só podem ser realizados por pastores? A resposta bíblica a estas duas questões é não. Ambas estas ordenanças foram atribuídas à igreja e não ao ministério pastoral.

É por isso que, apesar de não considerar a designação “clero” como biblicamente adequada à igreja, aplico-a neste contexto. Porque temos, erroneamente, projetado para os nossos pastores um papel sacerdotal, quando, de acordo com o Novo Testamento (I Pedro 2:5,9), todos os crentes são sacerdotes perante Deus, não existindo distinção entre clero e leigos.

De uma forma mais abrangente, a função pastoral não é realizar o ministério da igreja, mas sim ajudar e capacitar todos para o exercício dos seus dons e ministérios na igreja (Efésios 4:12). Esta perspectiva, fundamentada nas Escrituras, vai mais além da tendência centralizadora a que por vezes assistimos, pois potencia uma vivência em igreja, na qual todos poderão e deverão estar ativamente envolvidos.

Os pastores e líderes têm, portanto, a responsabilidade de promover o desenvolvimento dos dons, para que toda a igreja possa desenvolver os diversos ministérios em dependência de Deus e não da função pastoral, para além dos limites do clero.


Termino com o contundente desafio de Paulo: "E não sede conformados com este mundo, mas sede transformados pela renovação do vosso entendimento, para que experimenteis qual seja a boa, agradável, e perfeita vontade de Deus" (Romanos 12:2), na expetativa de que sejamos motivados a uma verdadeira transformação e renovação da nossa maneira de pensar em relação à igreja.

Comentários

  1. Concordo com o que o pastor diz acerca do domingo, mas há alguns aspectos a considerar.
    O primeiro é que o domingo certamente não é o único dia que devemos consagrar ao Senhor, mas sendo ele praticamente o "Sabbath" dos cristãos acaba por ser um dia - no mínimo - diferente, por ser o dia que deixamos os nossos trabalhos e nos dedicamos (ou ao menos deveríamos) às coisas do Senhor.
    Ainda um segundo aspecto é que por mínima que seja esta base bíblica, não seria correcto compreender que em Apocalipse 1.10 João considera o domingo o dia do Senhor?

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  2. Caro Rodolpho,

    Antes de mais, agradeço-lhe pelo seu comentário!

    Em relação ao Sabbath, no que respeita a ser um dia de descanso (mudança de atividade), parece-me que o registo bíblico aponta para a necessidade de guardarmos um dia da semana para o repouso, à semelhança do padrão estabelecido na criação. Não vejo, no entanto, base para se dizer que esse dia tem que ser o primeiro. Se adoptarmos uma posição com esse tipo de rigidez, parece-me que nos aproximamos mais dos fariseus, num tipo de zelo claramente condenado por Jesus. No que respeita à dimensão da nossa dedicação às coisas do Senhor, num dia em particular, julgo que a mudança de paradigma que o Novo Testamento evidencia vai no sentido de considerarmos todas as coisas que fazemos, em todos os dias, em todos os lugares, como coisas do Senhor. Esse sim é um tremendo desafio quer para ser vivido, quer para ser ensinado.
    Em relação ao texto de Apocalipse, apesar de não estar explícito que se tratava de um Domingo, por paralelo com outros textos que falam sobre o primeiro dia da semana, a maior parte dos comentaristas indica que deverá ser uma referência ao Domingo. O que gostaria de destacar é que a expressão "dia do Senhor" é mais usada para fazer referência ao dia da vinda do Senhor (Atos 2:2, I Cor. 5:5, II Cor. 1:14, I Tess. 5:2, II Tes. 2:2, II Ped. 3:10) do que para falar sobre um dia da semana em particular. Por outro lado, quando vemos a nossa vida cristã como um todo, em todos os momentos,não há como não considerar todos os dias como dias do Senhor, inclusivamente o Domingo.

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  3. Creio que toda a discussão, nem o post seria escrito se no fundo do "nosso cristianismo" não permanecesse um eterno problema. No fundo, não entregámos as nossas vidas a Deus. Apenas substituímos a nossa "prateleira" da religião por outra nova. Agora somos Evangélicos...
    É importante ensinar-se acerca de Cristo como alguém que, como deu tudo, requer tudo de nós.
    Concordo com tudo o que escreveste.
    Resta-me tristeza por ver cada vez mais "cristãos nominais"...

    No entanto, voltando ao que discutias com o Rodolpho, creio que há um elemento importante.
    concordo que o que Deus nos ensina com a criação é que há, de facto um padrão para o homem. 6 dias de trabalho, 1 de descanso. O dia de descanso, não sendo mais importante, é por outro lado diferente. É de descanso.
    Mesmo assim, quando Deus ordenou o Shabbath fê-lo num contexto comunitário. quando a igreja começou a reunir-se no primeiro dia da semana fê-lo para adoração.
    Quero dizer com isto que, sim, concordo que o dia em si não seja importante, mas é uma questão comunitária.
    Não creio que seja ensinamento bíblico que, membros de uma igreja tenham dias de descanso cada um a seu "bel-prazer".
    Isto traz-nos a outra discussão, que, confesso, ainda não sei como responder.
    Trabalhos por turnos, trabalhar ao domingo, trabalhos sem folgas, etc.
    Será que honram a igreja do Senhor ou que obedecem ao ensino do Senhor acerca do dia do descanso?

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  4. Olá Ismael,

    Obrigado pelo teu comentário!

    Salvo os trabalhadores que tenham possibilidade de escolher o seu dia de descanso, é evidente que não podemos ter dias de descanso a nosso "bel-prazer". É natural que o descanso seja resultado do vínculo que existe entre a entidade empregadora e o trabalhador, ao abrigo da legislação vigente. Parece-me que respeitam este princípio, quando, dentro do seu âmbito profissional, gozam um dia de descanso semanal.
    Quando existe a opção de escolher o dia de descanso e não escolhem o dia em que a igreja se congrega para celebrar, o problema poderá ser de outra natureza, não relacionada com o dia...
    Coloco a questão de outra forma: quando percebemos que a vivência cristã, como igreja, é para além dos limites do domingo, a questão sobre turnos, trabalho ao domingo, etc, perde relevância, no meu entender.

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  5. Caros pastores,

    Antes de mais, ao atentar para os comentários vejo que no cerne da questão não discordamos em nada.

    Uma última palavra. Creio que a conclusão será sempre a mesma e creio também que ambos concordamos com tal conclusão. E essa conclusão é: o problema não está nas coisas em si - no caso, o domingo - mas sim na má compreensão que as pessoas têm de tal coisa. Mas se tal problema fosse o grande mal da cristandade de hoje em dia não seria algo tão preocupante, mas infelizmente o grande problema é mais profundo que isso.

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  6. Caro Rodolpho,

    Mais uma vez, agradeço pelo seu comentário!

    De facto, a minha mensagem inicial não pretendia identificar o maior problema do cristianismo atual, mas sim colocar em debate alguns (poucos) sintomas (que em determinadas circunstâncias, também são causas) de uma tendência atrofiante da vida da igreja, com um sério peso tradicionalista, na minha maneira de ver.
    Não considero que nenhum dos elementos sobre os quais escrevi (templo, culto, domingo e clero) sejam errados, por si próprios. Antes pelo contrário, o desafio é de recuperarmos o genuíno papel bíblico de cada um deles, potenciando uma saudável vivência cristã da igreja, para além desses limites. Por outras palavras, é necessário aplicar as verdades bíblicas na nossa prática eclesiástica, de tal forma, que aqueles elementos não se transformem em limites. Pelo feedback que recebi, até ao momento, parece-me que há acordo nesta ideia central.

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